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Emenda dos precatórios – um sistema discriminatório e inconstitucional

Rogério Viola Coelho

Advogado, integrante do Conselho Editor do DDF

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A principal alteração visada pela PEC 23/2021 na Constituição é a fixação de um “teto de gastos” anual com precatórios (art. 101-A do ADCT), a vigorar por dez anos. Ele será igual a 2,6 % da receita corrente liquida de doze meses. Daria hoje um teto de menos de 20 bilhões, que é um valor muito inferior aos montantes habilitados a cada ano (59 bilhões em 2021 e 89 bilhões para 2022). A segunda alteração parcela grandes precatórios em dez anos e a terceira opera a eliminação dos juros e fixa para os créditos, correção menor do que a inflação (SELIC). A quarta mudança desloca créditos dos Estados e Municípios para compensar suas dívidas com a União.

O universo de pequenos credores habilitados – previdenciários e servidores da União – já passou de cem mil pessoas em um ano. Além destes são lesados milhares de pequenos e médios empresários. Em face deste teto de gastos anual rebaixado, a Emenda vai conduzir ao esvaziamento de direitos individuais que são reconhecidos como direitos fundamentais substantivos. São atingidos direitos atuais – precatórios já habilitados este ano – e precatórios que serão habilitados nos anos subsequentes, repetindo-se a perversa apropriação ao longo de 10 anos. É instituído formalmente um processo executivo de exceção para credores da União legitimados por decisão judicial, desprovido de efetividade, enquanto todos os demais cidadãos seguirão garantidos pelo devido processo legal para cobrar seus créditos. Assim, o significado maior da edição da Emenda será o de desigualar um grande grupo de pessoas na aplicação da lei, por longo tempo.

 A aprovação da PEC ofenderá duplamente o princípio da igualdade perante a lei (isonomia). Discriminará cidadãos na edição da lei – as normas projetadas são lei de natureza superior – e também imporá a um grupo formado predominantemente por trabalhadores, radical desigualdade na aplicação da lei. Neste passo os poderes constituídos excedem a competência que a Constituição lhes confere para emendá-la, configurando grave inconstitucionalidade material. A seguir, a análise das alterações apontadas.

PRIMEIRA – Os segurados da previdência e servidores públicos atingidos são titulares de direitos individuais fundamentais substantivos, consagrados pela Constituição (art. 6º, 7º, e § 3º do art. 39). E o sistema de precatórios constitui uma garantia institucional para a efetivação da tutela porque, embora retarde, torna obrigatório o pagamento pelos poderes constituídos em cumprimento a Constituição. Assinale-se que os valores habilitados já teriam ingressado nos patrimônios individuais dos credores, em

decorrência da decisão judicial final, quando reapropriados pela União, na sistemática projetada pela PEC. Desta forma, o novo sistema institui objetivamente, ano após ano, um novo empréstimo compulsório dissimulado sobre o universo de novos credores habilitados, que pode passar de 100 mil. Para a restituição de tais valores, a PEC institui um concurso de credores perverso, que produzirá o seu aviltamento, transformando em poucos anos a operação em confisco da quase totalidade do valor original devido.

O estranho sistema de empréstimo compulsório da PEC invoca a insuficiência de recursos orçamentários para atendimento dos auxílios emergenciais decorrentes da calamidade pública instaurada no País. Esta situação constitui pré-requisito suficiente para a imposição do empréstimo compulsório pela União, que é regrado pela Constituição – “para atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública...” (art. 148) e ratificada pelo Código Tributário – “calamidade pública que exija auxílio federal impossível de atender com os recursos orçamentários disponíveis” (Art. 15,II).

Cumpre assinalar que a eleição dos sujeitos passivos da imposição do empréstimo previsto pela Constituição deve seguir os critérios de equidade nela consignados (art.150). O empréstimo não pode “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situações equivalentes”, sendo “proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. O regime de exceção projetado pela PEC, incidindo preponderantemente sobre trabalhadores indefesos e pequenos empresários, configura uma discriminação em razão de ocupação profissional, desigualando pessoas que estão em situação muito inferior à dos grandes empresários, habitualmente protegidos pelo governo por isenções variadas, no sistema tributário vigente.

Os recursos para o custeio dos auxílios emergenciais e demais políticas de amparo, necessárias neste momento de pandemia, conforme a Constituição devem ser obtidos pela imposição de um empréstimo compulsório sobre os contribuintes de maior capacidade contributiva, começando pelos bancos, que ostentam lucros multibilionários a cada trimestre, bem como as empresas que mais lucraram com a pandemia, como o agronegócio exportador e as empresas farmacêuticas.

Por fim, no ato de imposição do empréstimo compulsório do art. 148 da CF, é fixado prazo certo para restituição da integralidade dos valores devidos (§ único, art.15, CTN). Já o sistema veiculado através da Emenda impõe dez empréstimos sucessivos, ao longo de dez anos e para restituição institui um perverso concurso de credores, que conduz ao confisco da quase totalidade dos valores apropriados. Impõe formalmente um verdadeiro regime de exceção altamente discriminatório.

SEGUNDA – Ao alterar execução de créditos contra a Fazenda na sua fase final, a Emenda institui para os seus titulares, por longos anos, um processo judicial ad doc despido de efetividade. Um processo de exceção que importa na subtração do direito ao devido processo legal – assegurado a todos os cidadãos (art. 5º, LIV) – com severa obstrução ao direito fundamental de acesso à justiça para um grande grupo de desprotegidos (Art.5º, LIV e XXXV). Trata-se de direitos fundamentais procedimentais que garantem os direitos fundamentais substantivos, e a tutela jurisdicional efetiva dos demais direitos.

TERCEIRA – Tendo a Emenda natureza de lei de nível superior, sua aprovação configura notória discriminação na edição da lei. Ao suspender o direito ao devido processo legal dos credores da União certificados por decisões judiciais finais, impõe a este universo determinado de pessoas uma brutal desigualdade na aplicação da lei e por longos anos. Desigualdade na aplicação da lei, primeiramente em relação a União, que seguirá dispondo da execução fiscal sobre eles, inclusive na cobrança de taxas de serviços públicos. Desigualdade, também, em relação a todos aqueles com quem as pessoas discriminadas contraem dívidas, que são garantidas por ações executivas. Os segurados da previdência e servidores públicos – que têm nos créditos sobre a União seu único ou principal meio de vida – seguirão expostos a execuções coercitivas de seus fornecedores de alimentos, serviços públicos e bancos. Instituições que seguem aparelhadas com execuções de máxima coercividade na cobrança de empréstimos imobiliários e de empréstimos consignados concedidos, que já se tornaram cumulativos em face da demora dos processos.

QUARTA – Por fim, constata-se que, negando a inviolabilidade dos direitos e, ainda, violando o princípio da igualdade perante a lei, na sua dupla dimensão – de igualdade na edição e igualdade na aplicação da lei – a Emenda proposta atinge o cerne da Constituição. A inviolabilidade dos direitos fundamentais e o princípio da igualdade perante a lei constituem os seus fundamentos legitimadores. Diante da existência de limitações materiais intrínsecas para emendas à Constituição, ficam fora do poder de emenda.

CANOTILHO e VITAL MOREIRA lecionam que “os princípios fundamentais, nas suas múltiplas dimensões e desenvolvimentos, formam o cerne da Constituição e consubstanciam a sua identidade intrínseca. Por isto, todos os princípios fundamentais estão, em maior ou menor medida, garantidos contra a revisão constitucional, erigidos em limites materiais de revisão, tanto em si mesmos como em várias das suas dimensões mais eminentes”1 . E SEPULVEDA PERTENCE atesta que o STF já havia reconhecido “a existência de limitações formais e materiais implícitas ao poder de reforma constitucional”. Para ele “a própria denominação de poder constituinte derivado visa encaminhar a fuga das suas limitações intrínsecas ou explicitas, e acresce que “na verdade, o que se tem é uma função constituinte entregue a um poder constituído, portanto limitável pela Constituição que o institui”2.

 A instituição de um regime de exceção para pagamento dos precatórios habilitados contra a União não tem respaldo em nenhum bem jurídico contemplado pela Constituição. Ao revés, o atual texto constitucional confere prevalência máxima à garantia do exercício dos direitos fundamentais, considerada obrigação fundamental dos poderes constituídos, que foram submetidos ao direito com o advento Estado Constitucional, ficando impedidos de obstruir sua efetividade.

O projeto de isentar agora a União se apoia na velha concepção da supremacia do Estado sobre a sociedade, visto como um ente dotado de soberania. Uma concepção originária do Estado de Direito Liberal, quando era o próprio Parlamento que decidia sobre a conformidade das leis que editava com a Constituição, e podia ainda alterá-la sem restrições. Esta ideia remanesce hoje como ideologia, na cabeça dos juristas liberais. Essa crença é que leva a negar a obrigação fundamental do Estado de assegurar o exercício dos direitos fundamentais individuais e sociais.

Mais do que isto, leva a inverter o sentido da tutela devida pelos poderes constituídos aos direitos fundamentais, passando os titulares destes direitos, situados na base da pirâmide social, a prestar tutela ao Estado, através de empréstimos compulsórios a fundo perdido.

1 CANOTILHO, J.J. Gomes. MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 1991.

 

2 SEPÚLVEDA PERTENCE, Jose Paulo. O controle de constitucionalidade das emendas constitucionais pelo Supremo Tibunal Federal: Crônica de Jurisprudência. In: Revista Direito do Estado, Tomo 1. Editora Max Limonad.