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Do significado institucional do novo regime de pagamento de precatórios, instituído pelas emendas 113/114-2021

Rogério Viola Coelho

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 INTRODUÇÃO (Tarso Genro)

 O meticuloso texto de Rogério Viola Coelho que ora vem à lume trata, de forma rigorosa, de uma cristalina violação do Estado Constitucional, cuja naturalização só poderia ocorrer dentro de um processo político específico, em que a exceção substitui a regra e em que a política, distorcida pela força dos fatos, submete a força normativa legada pelo constituinte, expressa no corpo positivado da Constituição. Esta, que revela o dever ser da sociedade – sempre em construção e em permanente revelação das suas debilidades – está sempre mais adiante, no horizonte, cuja maior ou menor possibilidade de alcance será dada pela presença do povo concreto, na sociedade civil, mobilizado e consciente dos seus direitos e prerrogativas. Fora disso, o que pode ocorrer é que a nova ordem se dissolva no fogo mortal da hidra do fascismo e da ditadura.

  

EMENTA

As Emendas 113/114/2021 instituíram um teto de gastos rebaixado para pagamento de precatórios, que bloqueia o recebimento da maior parte dos créditos habilitados.  Ocorrendo o bloqueio depois de já estarem internalizados nos patrimônios individuais dos credores, é violado o seu direito fundamental individual de propriedade. Além disto, instituindo um processo de execução excepcional que vai bloquear o seu resultado útil, para os créditos habilitados ano a ano, nega-lhes o direito fundamental ao devido processo legal e obstrui o seu direito fundamental de acesso à justiça, por cinco anos.

–  O processo de execução excepcional, sendo imposto apenas a um grupo recortado na sociedade, corresponde a um regime de exceção que nega a este grupo garantias fundamentais mantidas para todos os demais cidadãos. Trata-se de um grupo humano situado na base da sociedade, formado por segurados da previdência, servidores públicos, pequenos proprietários rurais expulsos de suas terras pelas hidroelétricas e pequenos empresários. Serão centenas de milhares de pessoas que tiveram os seus direitos resistidos em juízo por muitos anos pelo Estado, até serem completamente adquiridos. Tinham então a garantia fundamental da inviolabilidade dos direitos, e a garantia fundamental da igualdade perante a lei, também macro princípios do Estado de Direito, que guarnecem cada um dos direitos fundamentais.

– A edição das Emendas constitui uma discriminação na edição lei para estes credores do Estado certificados pela Jurisdição, suspendendo a disponibilidade de seus créditos – que são bens integrados aos respectivos patrimônios individuais – sem  prazo de pagamento, o que leva de imediato a seu brutal  aviltamento, para eventual transferência.

– O regime processual de exceção imposto aos titulares de precatórios contra o Estado gera para eles uma situação prolongada de brutal desigualdade na aplicação da lei em relação aos demais cidadãos. Enquanto seus créditos são lançados a fundo perdido, as obrigações que assumem com outros são guarnecidas por ações judiciais com força executiva reforçada.  As emendas afrontam assim a garantia fundamental da igualdade perante a lei em sua dupla dimensão – a igualdade na edição da lei e a igualdade na aplicação da lei. Um macro princípio do Estado de Direito que guarnece todos os direitos individuais   e a igualdade entre os cidadãos. 

– As emendas conferem aos credores que não receberem seus créditos no ano previsto, a faculdade de recebê-los do Estado no ano seguinte, mas com deságio mínimo de 40%; conferem também a faculdade de ceder os créditos mutilados a terceiros, sendo receptadores habituais os banqueiros, que os adquirem por preço vil e vendem próximo ao valor de face.

Em consequência, centenas de milhares de pessoas da base da sociedade são chamados a fazer, por via oblíqua, uma transferência de renda de baixo para cima, estimada entre 500 bilhões e 1 trilhão de reais ao longo de 5 anos, montante destinado ao enriquecimento dos banqueiros, gerando estimulo ao mercado financeiro.

 

  1. O novo Sistema de Pagamento de Precatórios e o Estado Constitucional de Direito

As Emendas Constitucionais 113 e 114/2021 introduzem um teto de gastos com precatórios na Constituição que fica muito aquém do montante necessário anualmente para o seu pagamento. Já no primeiro ano (2022) faltará mais de dois terços do valor habilitado. Vigorando até 2026, o processo de exceção imposto pelas emendas acumulará um volume de créditos sobrantes, ano após ano, entre 500 bilhões e um trilhão de reais, que ficarão sem prazo de pagamento.

Em busca do significado institucional das Emendas cumpre lembrar que o  Estado de Direito é a combinação da divisão de poderes com o império da lei mais as garantias dos direitos fundamentais, expressas no artigo 5º da Constituição: (I) a garantia fundamental da inviolabilidade dos direitos fundamentais e (II) a garantia fundamental da igualdade perante a lei, que impede a imposição de regimes de exceção que discriminem quaisquer grupos sociais. O regime de exceção imposto reduz o império da lei, ao excluir uma parte do povo da sua proteção. As normas que instituem os direitos e garantias fundamentais individuais tem dupla função no ordenamento: “garantem não só direitos subjetivos dos indivíduos, mas são também princípios objetivos básicos para o ordenamento constitucional democrático e do Estado de Direito, influem em todo o seu alcance sobre o ordenamento jurídico em seu conjunto”. Daí porque tais garantias fundamentais são consideradas macro princípios do Estado de Direito.. (1)

 Destacando a missão da garantia fundamental da inviolabilidade dos direitos individuais e a da garantia fundamental da igualdade na edição e na aplicação da lei para todos os cidadãos, postas no artigo 5º da Constituição, TARSO GENRO mostrou a sua relevância, sentenciando que constituem os fundamentos da Constituição democrática, pela  função superior que cumprem no arranjo institucional:

“O arrolamento dos ‘direitos fundamentais’ constantes da Carta de 88 é precedido, não gratuitamente, da afirmação do princípio da igualdade formal e do princípio da inviolabilidade dos direitos. Na verdade, aquele elenco de direitos fundamentais é dependente. Eles só são realizáveis, mesmo em parte, se estiverem cercados pelo princípio da ‘igualdade formal’ e também protegidos pelo dogma da ‘inviolabilidade’. Ambos constam do artigo 5º da CF.“ (2)

Dispõe o artigo 5º da Constituição:

 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade, nos seguintes termos:”

 Da afirmação de TARSO – os direitos fundamentais só são realizáveis se estiverem cercados pelas duas garantias fundamentais positivadas no artigo 5º – se pode extrair que, estando guarnecidos pelas garantias da inviolabilidade dos direitos e da igualdade perante a lei,  a efetivação dos direitos fundamentais é realizável (ao menos em parte). Com esta conclusão ele concorre para lembrar a tese de FERRAJOLI, que inverte a relação entre democracia e direitos fundamentais. As novas Constituições instituem a Democracia Constitucional, mas ela – a democracia – só se realiza através (e na medida) da efetivação dos direitos fundamentais (3). Assim, os dois macros princípios, além de proteger o Estado Constitucional de Direito instituído na Constituição concorrem para a realização (construção) da Democracia. E a atividade de defesa e luta pela efetivação dos direitos, constitui um contributo para a realização da democracia.

 

  1. As duas dimensões do princípio da igualdade perante a lei

O número de credores do Estado atingidos pelo processo de exceção crescerá ano a ano, alcançando ao longo de cinco anos centenas de milhares de pessoas que ficarão profundamente desigualados diante dos demais cidadãos na aplicação da lei.  Os credores do Estado atingidos são simultaneamente devedores dos entes públicos por tributos diversos, a começar pelo Imposto de Renda, mas também por taxas sobre serviços públicos, como água e luz. As pequenas empresas, quando atrasam os tributos, são cobradas através de execução fiscal, com enorme força coercitiva. E todos os seus credores seguem dispondo de ações executivas com especial força coercitiva. As suas dívidas com o sistema financeiro, quando atrasadas, dão ensejo a medidas reforçadas de cobrança. E suas obrigações crescerão com a mora que fatalmente ocorrerá em medidas variáveis. Discriminados na edição das emendas, eleitos para suportar um processo de exceção e discriminados na aplicação da lei  em face desse processo ineficaz imposto para haverem seus créditos,  este grupo da base da sociedade ficará sujeito a um cerco perverso.  

 O princípio da igualdade perante a lei tem efetivamente duas dimensões, a igualdade na edição da lei (igualdade na lei) e a igualdade na aplicação da lei. No Brasil, as duas dimensões do princípio foram assimiladas pela doutrina a partir da Constituição de 1988 conforme Celso Antonio Bandeira de Mello:

“Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no artigo 5º caput –que todos são iguais    perante a lei. Entende-se em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a a isonomia.    

O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os individuos, mas, a propria edição dela sujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.” (4)

 A gênese da democracia moderna, revelada nas Declarações de Direitos do Homem do fim do século XVIII, mostra a relevancia do  princípio da igualdade perante a lei. O postulado da igualdade perante a lei surge logo no artigo 1º da Declaração de 1789, que indica a universalização dos direitos: “Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Esta ideia foi concebida  na França oitocentista em oposição à desigualdade dominante no Ancien Régime, que era  materializada  na edição da lei, geradora de privilégios e acentuada  na  sua aplicação, sempre em nome do Rei, que era o mediador da vontade divina na vida social.

A primeira Constituição da França revolucionária,instituindo o Estado de Direito,  afirma que “a lei deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. A mesma Declaração de 1789 dizia que o fundamento da Constituição é a defesa dos direitos fundamentais, proclamando no seu artigo 2º que: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem”. E considera o direito de propriedade sacré et inviolable, sob o fundamento de que era essencial para garantia da liberdade. O novo sistema de pagamento de precatórios instituído pelas Emendas 113 e 114, como vimos, viola diversos direitos individuais fundamentais de seus destinatários, consagrados no artigo 5º da Constituição, entre os quais avulta o direito de propriedade consagrado na França oitocentista como essencial ao exercício da liberdade.

 

  1. Das violações que ofendem o princípio da inviolabilidade dos direitos fundamentais

 Primeira. O direito de propriedade é consagrado no caput do artigo 5º e no seu inciso XXII – “é garantido o direito de propriedade”. Os créditos habilitados contra o Estado já estarão internalizados nos patrimônios individuais dos credores quando o sistema de pagamento de exceção, instituído pelas Emendas, bloquear o exercício das faculdades de usar, fruir e dispor do bem, e o direito de reavê-lo, que constituem o conteúdo essencial do direito de propriedade.

O artigo 1228 do Código Civil conceitua o direito de propriedade definindo o seu conteúdo pelo feixe de faculdades que o integram:

“Art. 1228O proprietário tem a faculdade, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”

As Emendas conferem aos credores sobrantes, a faculdade de recebimento do Estado devedor no exercício seguinte, com redução mínima de 40%, operando assim uma redução substancial do direito. O mesmo ocorre com a faculdade instituída de transferência a terceiros – aos receptadores habituais. Esta operação – já praticada amplamente com os créditos de precatórios contra os Estados inadimplentes – importa na perda de 70 a 80% do seu valor.

Haveria nestas operações uma devolução (tardia) da faculdade de dispor dos créditos por quem os detinha injustamente? Sim. Mas o preço pago para reaver esta faculdade importa numa expropriação da substância do direito, e fica difícil de acreditar que ela não seria intencional.

Segunda. A imposição por cinco anos de um processo excepcional, que bloqueia e produz uma redução substancial do seu resultado útil, constitui uma negação do seu direito fundamental ao devido processo legal, inscrito no inciso LIV do artigo 5º, que reza que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Terceira. Na medida em que bloqueia o acesso ao resultado útil do processo, esvaziando a tutela jurisdicional, viola o direito fundamental de acesso à justiça deste universo de cidadãos. Direito fundamental individual inscrito no inciso XXXV que reza – “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça à direito.

Quarta. Na medida em que torna ineficaz a decisão judicial definitiva, viola também a garantia da coisa julgada, inscrita no inciso XXXVI do mesmo artigo que reza: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”

O direito individual fundamental de propriedade é um direito substantivo, enquanto  os demais direitos individuais fundamentais violados, com o regime de exceção imposto para um grupo significativo de credores do Estado, situados na base da sociedade, são direitos adjetivos, vale dizer, de natureza procedimental.

  

  1. 4. Do abuso da competência do legislador ordinário para emendar a Constituição

 Os poderes constituídos invocaram a competência conferida ao legislador na Seção do Processo legislativo, enunciada no caput do artigo 60 – “a Constituição poderá ser emendada, mediante proposta …”. Ocorre que os direitos violados estavam guarnecidos pelas duas garantias fundamentais examinadas, ambas protegidas pelas cláusulas pétreas do § 4º do mesmo artigo:

….

“§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a  abolir:

I – A forma federativa de Estado;

(…) 

 

IV – Os direitos e garantias individuais.”  

O STF já se manifestou sobre a violação dos limites explícitos ao chamado poder de emenda quando os poderes constituídos aprovaram emendas que adiavam o pagamento de precatórios habilitados contra Estados e Municípios, atrasados por vários anos.  Este o voto da relatora Ministra ROSA WEBER:

 “Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse poder de realizar o Direito com plena eficácia vinculativa em lides já solucionadas por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade da coisa julgada?  Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa.  Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno.  

 Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, a meu juízo, a lei a que o constituinte originário veda prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional. E interpreto a dicção do art. 60, § 4º, da CF – não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir,  os direitos e garantias individuais –, no sentido de que também se encontram vedadas restrições equivalentes a uma efetiva supressão.  Ora, o acesso à Justiça, a efetividade da jurisdição, a efetividade do processo como instrumento de tutela de direitos, a irretroatividade da lei frente ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada estão contemplados em nossa Constituição como garantias individuais, garantias fundamentais, e nessa medida foram erigidos à condição de cláusulas pétreas no texto constitucional. Todos esses postulados, com a devida vênia, foram atropelados pela Emenda Constitucional 62, em vários de seus ditames, como ontem já se decidiu, e, a meu juízo, da mesma inconstitucionalidade material se ressente o parágrafo quinze do artigo 100 da CF, com a redação da Emenda 62.

 Subscrevo na íntegra os fundamentos do eminente Relator, Ministro Ayres Britto, quando conclui que os dois modelos de regime especial para pagamento de precatórios instituídos no ADCT, art. 97, afrontam a ideia central de Estado Democrático de Direito, violam as garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, 5º, XXXV, do devido processo legal, 5º, LIV, e da razoável duração do processo, 5º, LXXVIII, e afrontam a autoridade das decisões judiciais, ao prolongar por mais de quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado, já prorrogado por um decênio pela Emenda Constitucional 30, de 2000.” 

 

  1. Da fuga dos poderes constituídos das limitações explicitas ou intrínsecas da competência para emendar a Constituição

 A instituição pelos poderes constituídos, através de emenda, de um regime de exceção no pagamento de precatórios habilitados contra a União e a violação do direito fundamental substantivo de propriedade de um grupo de cidadãos, constitui um abuso da competência que lhes foi conferida pela Assembleia Constituinte.  A doutrina liberal exalta essa competência como um poder – o poder de emendae eleva o status dos poderes constituídos, dizendo que são dotados de um   poder constituinte derivadoequivalente ao poder constituinte originário, diferenciado do originário apenas formalmente, por serem dele derivados. SEPÚLVEDA PERTENCE diz que o STF já reconheceu “a existência de limitações formais e materiais implícitas ao poder de reforma constitucional”....” a própria denominação poder constituinte derivado visa encaminhar a fuga das suas limitações intrínsecas ou explicitas”. E acresce que “na verdade, o que se tem é uma função constituinte entregue a um poder constituído, portanto limitável pela Constituição que o institui” (5).

 A equiparação dos poderes constituídos ao poder constituinte, que é a expressão primordial da soberania popular, deslocaria para o Estado o atributo da soberania, restituindo a ele o pleno domínio sobre a sociedade. A soberania que o Estado tinha na época do Estado absoluto, subsistiu na prática durante o Estado de direito liberal. O Parlamento é que decidia se as leis que editava estavam em conformidade com a Constituição e os poderes constituídos podiam emendá-la com o mesmo rito das leis ordinárias. O Estado – os poderes constituídos – detinha a soberania interna porquanto ela se configura com a inexistência de qualquer poder acima da instituição. Só com o advento do Estado Constitucional de Direito, surgido na Europa no segundo pós-guerra, a soberania do Estado feneceu.

A origem remota desta visão mitificada do Estado remonta à época do Estado absoluto, quando prevalecia a crença de que ele havia sido criado por Deus, que veicularia sua vontade sobre a sociedade através do Monarca. Contando com a legitimação religiosa, não admitia direitos individuais ou de grupos contra ou sobre ele. O Estado sacralizado era totalmente imunizado. Esta crença na soberania do Estado foi mantida no longo período da Democracia liberal, instituída pelas revoluções oitocentistas, mas por outros fundamentos. A crença na sua soberania persistiu porque o Estado é que editava a Constituição, para sua auto-organização, valendo pouco mais que um regulamento interno, modificável facilmente. Ademais, como era o próprio Parlamento que decidia sobre a conformidade das leis que editava com a Constituição, o que havia era uma espécie de autocontrole alterável sem obstáculos, ou dificuldades, pelos poderes constituídos.  Remanescia assim no imaginário social a crença na soberania do Estado.

O novo constitucionalismo alterou radicalmente esta situação, consagrando a soberania popular. A Constituição não seria mais editada pelo Estado, mas sim pelo povo soberano no processo constituinte; processo concluído pelos representantes eleitos, com poderes especiais para editá-la. A supremacia da Constituição sobre os poderes constituídos implicava em reconhecer à manifestação da soberania popular nela materializada. Num patamar superior ao das manifestações subsequentes da soberania popular, na vida cotidiana da democracia parlamentar, através dos poderes constituídos.

FERRAJOLI diz que o princípio da supremacia da Constituição institui um sistema de normas sobre a produção de normas, que não se limita mais só “a normas formais sobre a competência ou sobre os procedimentos de formação das leis. Inclui também normas substanciais, como o princípio de igualdade e os direitos fundamentais, que de modo diverso limitam e vinculam ao poder legislativo excluindo ou impondo-lhe determinados conteúdos” (6). Segundo observa o autor italiano, produziu-se uma inovação na própria estrutura da legalidade, talvez a conquista mais importante do direito contemporâneo: a regulação jurídica do direito positivo mesmo, não somente quanto às formas de produção, senão também no que se refere aos conteúdos produzidos(7).

 

  1. O giro do constitucionalismo no segundo pós-guerra e suas razões próximas

A garantia da supremacia da Constituição veio de um arranjo institucional feito nos processos constituintes instaurados com a insurgência dos povos dominados pelo nazifascismo, após sua derrota na segunda guerra mundial. Ele foi concebido pensando na eventualidade de sua volta à cena política pela via eleitoral, como ocorrera no início do século. Este arranjo consistiu: (I) numa limitação imposta às emendas à Constituição pelo legislador, com a exigência de maioria qualificadas e bloqueio de várias matérias. (II) na instituição de um órgão judicial acima da estrutura do Poder Judiciário, para garantir o cumprimento a Constituição pelos poderes constituídos. Reconhecida como expressão suprema da soberania popular, ela teria agora a função estratégica de orientar, limitar e condicionar as manifestações subsequentes da soberania do povo através dos poderes constituídos.

A supremacia da Constituição é um macro princípio do Estado Constitucional de Direito, essencial para a realização da Democracia Constitucional que a Constituição institui. Apenas institui, mas não realiza. FERRAJOLI reflete bem esta ideia dizendo que “minhas teses se limitam a dar conta de um fato: que os direitos fundamentais estabelecidos por uma constituição rígida impõem, queiram ou não, limites e vínculos substanciais … à democracia política, tal como se expressa nas decisões das maiorias contingentes.” (8)

No Estado Constitucional de direito, a sociedade institui o Estado, desenhando os poderes constituídos e submetendo-os ao Direito. É a soberania popular que impõe ao Estado, no processo constituinte, a missão de garantir a efetividade dos direitos fundamentais sociais e individuais por ela consagrados, com a garantia de igual medida para todos. É o que expressa o preâmbulo da nossa Constituição. A Assembleia Constituinte declara estar reunida “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça …” Eis aí o giro do novo constitucionalismo. A pretensão de imunização do Estado, expressa nas emendas em questão, se apoia na crença da soberania perdida, que remanesce como ideologia na cabeça dos juristas liberais. A soberania do Estado resultava da inexistência de qualquer poder acima dele e agora o Estado foi submetido à soberania popular objetivada na Constituição.

FERRAJOLI descreve com extrema clareza a perda da soberania do Estado com o    advento do Estado Constitucional de Direito: “Desaba, assim, o postulado (…) da onipotência do legislador e da soberania do parlamento. Como a subordinação do próprio poder legislativo da maioria à lei constitucional e aos direitos fundamentais nela estabelecidos; o modelo do estado de direito aperfeiçoa-se e completa-se no modelo do estado constitucional de direito, e a soberania interna como potestas absolutas (poder absoluto), já não existindo nenhum poder absoluto, mas sendo todos os poderes subordinados ao direito, se dissolve definitivamente”. (9)

 A supremacia da nossa Constituição consistiu (I) em impor limites procedimentais e substanciais ao legislador e foi garantida (II) com a instituição de um órgão legitimado para controlar a constitucionalidade das atividades do legislador e o seu cumprimento pelo Presidente que, conforme dispõe o seu artigo 78,  jura manter, defender e cumprir as suas determinações. O órgão que recebe a missão de assegurar a supremacia da Constituição é legitimado ex ante pela soberania popular que nela se expressa e pela eleição indireta dos seus membros, através dos titulares dos poderes constituídos, que são eleitos. A sua legitimação se consolida ex post à medida em que ele cumpre sua missão institucional. O Estado Constitucional de Direito inverteu, portanto, a supremacia, estabelecendo a supremacia da Constituição em lugar da supremacia dos poderes constituídos. Inverteu também o lugar da soberania, deslocando-a do Estado para o povo soberano, que institui o Estado na sua manifestação primordial no processo constituinte. A supremacia não é soberania da Constituição. Ela é a mediação necessária para afirmação da soberania popular.

 

  1. O avanço da democracia com as constituições do segundo pós-guerra

As constituições na Europa surgidas no segundo pós-guerra, constituem um avanço da democracia. CANOTILHO e VITAL MOREIRA dizem que na concepção tradicional, agora superada, a constituição era apenas o estatuto de organização do Estado, que estabelecia limites ao seu poder para preservar uma esfera de autonomia para os indivíduos, com a positivação da chamada liberdade frente ao Estado. Era um gesto de autolimitação do seu poder. Alheia à ordem social, a Constituição do Estado liberal não podia impor-lhe tarefas em favor dos cidadãos. Justamente porque elas eram editadas pelo Estado, ou pela nação, como diz a Constituição francesa de 1891. A soberania da nação só deu lugar à soberania popular na Constituição republicana de 1870. Antes dela onze foram editadas pela nação.

Na nova concepção, a Constituição é obra do povo soberano no processo constituinte, editada através de seus mandatários. É a Constituição que institui o Estado e o submete ao Direito, assegurando a sua supremacia sobre ele.  Ela é também agora a lei de organização da sociedade, trazendo “um caderno de encargos do Estado, das suas tarefas e obrigações no sentido de satisfazer as necessidades econômicas, sociais e culturais dos cidadãos e dos grupos sociais.” (9)

As correntes políticas identificadas com a doutrina do liberalismo econômico, extremado  com o avanço recente de partidos neofascistas, vêm pautando reformas em vários países com o objetivo de eliminar garantias institucionais, suprimindo ou esvaziando a efetividade dos direitos fundamentais sociais e individuais, que foram positivados extensamente nas constituições dos países democráticos, centrais e periféricos. O neofascismo no poder instaura uma guerra interna contra os partidos e correntes políticas que lhe opõem resistência, eliminando as lideranças e ativistas autônomos.

Os autores lusitanos assinalam que ao mesmo tempo a Constituição se arma para vencer a resistência à efetivação dos direitos por ela consagrados e para resistir às investidas contra eles. A sua rigidez é respaldada pelo sistema de controle de constitucionalidade, atribuído ao Tribunal que assegura a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. O Estado (vale dizer, os poderes constituídos), ficou submetido não só ao regime de competência e aos procedimentos prescritos pelo estatuto supremo, como também às suas determinações substantivas, ficando o legislador comprometido com a observância do conteúdo material das normas superiores e a agir no mesmo sentido. E o poder executivo fica obrigado a obedecer a Constituição. Como vimos, o Presidente na posse se obriga a “manter, defender e cumprir a Constituição” (art. 78).

No Estado Constitucional de Direito, o povo soberano não transfere o exercício da soberania ao Estado (aos poderes constituídos), o que valeria como um gesto de devolução a quem era o seu titular ao longo de muitos séculos. O mandato político não é mais um mandato com poderes gerais para exercer discricionariamente o comando da instituição. Ele agora confere aos mandatários competências específicas (chamadas no instituto do mandato civil de poderes especiais). Como ensina

KRIELE,“o Estado constitucional é um Estado de competências e, no seu âmbito, só cria direito quem esteja habilitado a fazê-lo, então o verdadeiro Direito ….é o que vem a ser, no final do processo que o revela e declara.”(10). E o órgão judicial instituído pela Constituição para garantir a sua supremacia, identifica e sana as ações ou omissões que a desfiguram. A iniciativa é atribuída a instituições criadas pela própria Constituição (artigo 60), recortadas nos poderes constituídos e nas instituições da sociedade, que são legitimados para as ações constitucionais. Também os cidadãos individualmente têm o Mandado de Injunção para obter uma regulamentação provisória de um direito fundamental, necessária ao seu exercício.

O avanço da soberania popular levou FERRAJOLI a dizer que foi instituída a democracia constitucional. Foi apenas instituída. Será realizada à medida da efetivação dos direitos fundamentais. É o que ele chama de “ DEMOCRACIA ATRAVÉS DOS DIREITOS” (11).

 

  1. A supremacia da Constituição no curso do Estado de Direito Liberal desprovida da garantia jurisdicional

 A atividade do legislador ordinário é uma atividade de concretização da Constituição, que desde o início trazia as regras de competência e de procedimento para sua realização. Era a dimensão formal da sua supremacia, que consistia na subsunção do processo legislativo às regras de competência e de procedimento. Com o advento do Estado Constitucional de direito, foi acrescida a dimensão material da supremacia, que implica em verificar a compatibilidade e a coerência das leis com os preceitos substanciais da Constituição, os direitos fundamentais, que são também princípios, à frente.  A supremacia da constituição, que no início consistia apenas na imposição de diretrizes procedimentais para a atividade do legislador, foi ampliada no Estado Constitucional de direito com a exigência de compatibilidade e coerência das leis com os preceitos substanciais da Constituição.

Esta ampliação foi a primeira inovação do Estado Constitucional. A segunda foi a exigência de maiorias qualificadas para a produção de emendas pelos poderes constituídos. E a terceira inovação foi a criação de uma garantia para a supremacia da Constituição, com a instituição dos Tribunais Constitucionais. Esta garantia foi concebida por KELSEN e posta por ele na Constituição da Áustria de 1920, pela primeira vez. A sua instituição se expandiu no continente Europeu no segundo pós-guerra, propiciando o controle concentrado da constitucionalidade das leis, por um órgão situado fora dos três poderes constituídos.

Nas constituições anteriores, do Estado de Direito Liberal, o princípio da supremacia da Constituição era geralmente positivado. Mas as constituições se limitavam a afirmar o princípio, sem instituir as garantias necessárias à sua efetividade. O primeiro exemplo disto é a Constituição da Itália de 1848 que explicitava a sua supremacia, vigente – vigente na época em que Mussolini ascendeu ao poder (1922) . Na Constituição de Weimar, editada em 1919 – vigente quando Hitler assumiu o poder, em 1933, também pela via eleitoral – a supremacia da Constituição sobre o legislador era explícita, mas inexistia a garantia jurisdicional para assegurar a supremacia efetiva da Constituição.  

 

8.1. A Itália de Mussolini

A Constituição da Itália à época teve origem no Estatuto Albertino, outorgado por Carlos Alberto, Rei da Sardenha, que foi adotado como carta magna pelo reino unificado da Itália em 1848. Ela afirmava no seu artigo 81 o princípio da supremacia: “Toda ley contraria al presente Estatuto queda ab-rogada. Mas a interpretação das leis cabia exclusivamente ao poder legislativo, conforme seu  Art. 73: “La interpretación de las leyes, en modo para todos obligatório, corresponde únicamente al poder legislativo.” Esta competência inclui a decisão sobre a conformidade da lei ordinária com a Constituição.

A inexistência de garantia para a supremacia da Constituição positivada no seu texto é que possibilitou a Mussolini avançar dentro da institucionalidade por três anos, até editar uma lei ordinária por cima da Constituição. Como relata Marcel Mangini Laurindo:

“Formalmente, tudo ocorreu dentro dos marcos da legalidade: Mussolini havia sido regularmente eleito e poderia ser investido na função pelo monarca. Com o Estatuto Albertino sob os braços, o futuro Duce formou uma coalizão com os mais variados matizes. Ele contou, inclusive, com o apoio de liberais (DE FELICE, 2018, p. 22). Sem nenhuma discussão, o Congresso italiano aprovou, em 1925, a lei 2263, que conferiu a Mussolini o poder de obstruir qualquer iniciativa de lei proposta por qualquer parlamentar. No Senado, uma única voz se levantou contra o projeto – a de Gaetano Mosca (SCHWARZENBERG, 1977, p. 45).” (11)

 

8.2. A Alemanha de Hitler

 A Constituição da Alemanha que estava em vigor em 1933, quando o partido nacional socialista com outros partidos elegeu Hitler Chanceler era a CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR, de 1919 – afirmava a sua supremacia genericamente no seu artigo 5º, que dispunha:

“Artigo 5 – A autoridade do Estado é exercida nos assuntos imperiais pelos órgãos do império com base na constituição imperial, nos assuntos do estado pelos órgãos dos estados com base nas constituições estaduais.”

O presidente do Reich prestava juramento de defender a Constituição e cumprir os seus deveres, que eram nela estabelecidos. Dispõe o seu artigo 42:

“Artigo 42 – (1) O Presidente do Reich prestará o seguinte juramento perante o Reichstag ao assumir seu cargo:

Juro que dedicarei minhas energias ao bem-estar do povo alemão, aumentarei seu bem-estar, protegê-lo de danos, defender a constituição e as leis do Reich, cumprir meus deveres com consciência e fazer justiça a todos.”

A Constituição não declarava explicitamente a sua supremacia sobre o poder legislativo – Reichstag – ou das leis que ele editava. Ela se limitava a regular as competências do processo legislativo, deixando ao legislador a regulação dos procedimentos. O Reichstag podia promover o impeachment do Presidente do Reich (art. 59) e ser dissolvido por ele (artigo 25), com a obrigação de convocar novas eleições em 30 dias.

O texto da Constituição de Weimar trazia um caso especial de controle de constitucionalidade, ao regular os conflitos surgidos no processo legislativo entre o parlamento e os demais órgãos que tinham participação ou intervenção no processo legislativo. A solução destes conflitos constitucionais entre instituições do Estado era encaminhada para o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO REICH alemão.

Não era um controle abstrato de constitucionalidade, como é o caso de eventuais conflitos das leis ordinárias editadas pelo Parlamento, ou atos normativos (como os decretos), com a normatividade constitucional. Estes conflitos não eram sequer previstos. Daí porque inexistia controle abstrato de constitucionalidade, que seria a garantia efetiva da supremacia da constituição sobre o as atividades dos legisladores. Nem era cogitado um órgão para exercer esta função garantista. A edição de emendas à constituição pelos legisladores era prevista e regulada, observando-se a exigência de quórum qualificado para instalação da Assembleia e maioria qualificada para aprovação.

A exigência de quórum de instalação e maioria qualificada para a aprovação de emendas era uma forma de defesa da constituição, na medida em que dificultava a sua modificação. Este mecanismo concorre para a sua rigidez, mas é insuficiente para garantia da supremacia da Constituição sobre os poderes constituídos.  A inovação principal foi a instituição de um órgão judicial externo aos três poderes, com a missão superior de garantia da supremacia da constituição. Ela apareceu pela primeira vez na Constituição da Áustria de 1920, concebida por KELSEN, que foi também o seu redator.  E, como vimos, ressurgiu no segundo pós-guerra na Itália e na Alemanha, expandindo-se primeiro no continente Europeu e a seguir nos países periféricos.

 

  1. O Tribunal Constitucional é uma garantia jurisdicional das garantias postas na Constituição, como a inviolabilidade dos direitos fundamentais e a igualdade perante a lei

O Tribunal Constitucional em face de sua missão de garantia da supremacia da Constituição é considerado o seu guardião. Mas nesta medida ele é simultaneamente uma garantia da soberania popular que se manifesta primordialmente no processo constituinte. O nosso Supremo Tribunal Federal, ao assumir as competências de Tribunal Constitucional, perdeu a competência para a unificação da jurisprudência relativa ao ordenamento ordinário e a competência para garantir a inviolabilidade dos direitos objetivos instituídos pelo legislador ordinário. Esta competência passou para o Superior Tribunal de Justiça, que julga os recursos especiais oriundos de todos os tribunais estaduais, além dos oriundos dos Tribunais Regionais da Justiça Federal.

O artigo 102 da CF dispõe que “Compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente a guarda da Constituição,” acrescendo várias outras elencadas no mesmo artigo, especialmente de privilégio de foro. O STF recebe recursos dos Tribunais inferiores que contêm questões constitucionais, exercendo assim o controle das decisões judiciais, no denominado controle concreto.  Controla, portanto, a constitucionalidade dos atos dos três poderes,

Interessante destacar, por último, que a garantia da igualdade na aplicação da lei e a garantia da inviolabilidade dos direitos objetivados na legislação ordinária, são asseguradas pelo Superior Tribunal de Justiça, que julga os recursos na hipótese de violação do direito objetivo e de desigualdade na aplicação da lei, uniformizando a jurisprudência.

A gênese histórica dos denominados Tribunais de cassação revela nitidamente que os Tribunais posicionados acima do segundo grau cumprem as funções de assegurar a igualdade na aplicação da lei e a inviolabilidade dos direitos individuais, recebendo recursos por violação do direito objetivo. Com o advento da Revolução Francesa, a origem divina do poder régio, invocada pelo Estado Monárquico foi renegada. Foram separados os poderes e a lei, posta pelo Parlamento, passou a ser a fonte única do direito. No início, prevalecia a crença de que a lei – entendida como expressão da vontade geral – seria obra perfeita, sem lacunas ou contradições, e o seu texto não se prestaria a leituras divergentes. Nestas condições, o juiz cumpriria uma tarefa simples; não seria mais do que “a boca que pronuncia a vontade da lei” – um simples funcionário, portanto.

A evolução da vida social mostrou em seguida que a obra do legislador real – resultando do embate político dos grupos sociais representados no parlamento e padecendo das limitações humanas – não tinha os atributos anunciados, cabendo ao julgador, ao aplicá-la no caso concreto, uma tarefa de interpretação que implicava, na prática, em “reconstruir” a vontade posta no conjunto dos textos produzidos pelo parlamento, que eram capazes de incidir no caso concreto. Hoje se sabe e reconhece que o juiz é um sujeito atuante, que interpreta a lei a partir das suas concepções de mundo e dos valores que assume. Nas múltiplas escolhas que o juiz faz, influem decisivamente o seu próprio sistema de valores, as suas convicções sobre o mundo e a sociedade, ainda que ele não tenha consciência disso no ato de julgar.

Era tão grande a segurança de que não haveria decisões divergentes na aplicação da lei, que foi estabelecido o retorno ao Parlamento para fixar o sentido da norma, quando se manifestassem mais de duas decisões divergentes nos tribunais, em grau de recurso. Quando transbordaram as discrepâncias, teve de ser criado um tribunal superior para unificar a jurisprudência. O denominado Tribunal de Cassação seria a garantia da igualdade na aplicação da lei, assim como a garantia da inviolabilidade dos direitos objetivos e garantias positivados no ordenamento. A garantia jurisdicional das garantias positivadas no direito escrito.

 

  1. Conclusão

Podemos concluir que as Emendas dos precatórios violaram direitos fundamentais de um grupo social recortado da comunidade social. Esses direitos fundamentais violados são assegurados pelas duas garantias fundamentais. A garantia da inviolabilidade dos direitos e a garantia da igualdade perante a lei – nas suas dimensões, de igualdade na edição da lei e igualdade na aplicação da lei.

Estas garantias são reconhecidas como garantias primárias, relevantes porque, sendo inscritas na Constituição, estão fora do alcance do legislador ordinário. Mas elas são insuficientes para realizar a sua função protetiva, porque não incidem automaticamente. As normas, todas as normas, não incidem sozinhas, elas têm de ser aplicadas por pessoas. Para sua aplicação necessitam de garantias jurisdicionais, instituídas para serem acionadas pelos titulares dos direitos e/ou garantias primárias. A iniciativa do cidadão busca tutela jurisdicional. Como mostramos antes, o Tribunal Constitucional é a garantia secundária oferecida aos titulares de direitos e garantias violados.

FERRAIOLI mais uma vez distingue claramente o estatuto das garantias primárias e das garantias secundárias. Ambas as garantias não se pressupõem existentes, elas necessitam ser positivadas no ordenamento. Vimos que as garantias primárias foram enunciadas no artigo 5º, caput. E é visível a carência de garantias secundárias para fazê-las valer. O jurista italiano dá como exemplo as garantias penais. Na ausência do direito penal, nenhum dos direitos tutelados por ele, a começar pelo direito à vida, teriam garantias primárias. Faltando a norma que proíbe a privação de liberdade, sem mandado motivado da autoridade judicial, não existiria garantia primária da liberdade pessoal. De forma ainda mais evidente, na falta de normas instituindo a jurisdição, não existiriam garantias secundárias para nenhum direito. E as lesões sofridas restariam irreparáveis. Obviamente, só por tal falta, seria absurdo negar a existência dos direitos, ao invés de, mais corretamente, admitir a inexistência de garantias secundárias, em face da ausência de normas que a predisponham.

“Em suma, os direitos existem se e somente se estão normativamente estabelecidos, assim como as garantias constituídas por obrigações e proibições correspondentes, existem se e somente se também elas se encontram normativamente estabelecidas. E isto vale tanto para os direitos de liberdade (negativos), como para os direitos sociais (positivos)”. (13)

Fica evidenciada a relevância da instituição do Tribunal Constitucional, mas convém lembrar que a garantia jurisdicional instituída pelo direito não é instransponível. Pode ser silenciada e mesmo extinta pelas armas em poder das milicias e/ou pelos tanques e canhões apontados para as instituições democráticas. Daí a necessidade de mobilização, em épocas como a que vivemos, da sociedade organizada – a garantia derradeira, situada na terceira linha de trincheiras de defesa da democracia.

 A sociedade organizada parece originária de uma metamorfose do povo, existente desde tempos imemoriais no estado de natureza, como dizem os contratualistas. Hobbes e Kant imaginaram assembleias gerais constituintes nessa época. O primeiro concebe uma assembleia que institui o Estado Absoluto, para garantia do direito á vida e a segurança pessoal. E o segundo uma assembleia constituinte que institui um Estado de Direito liberal, para garantir uma esfera de liberdade para os indivíduos, assegurando a não interferência do Estado e coexistência das liberdades individuais.

As assembleias constituintes do segundo pós-guerra instituíram o Estado Constitucional de Direito, que ultrapassa o projeto kantiano, assegurando, além da liberdade negativa, também a liberdade positiva, propiciando aos cidadãos a intervenção na determinação das suas condições de vida. A liberdade positiva conta com a mediação das organizações intermediárias existentes na sociedade, tais como partidos políticos, sindicatos movimentos sociais e comunidades organizadas.

As suas formas de organização, hoje, certamente devem considerar tanto os meios de dominação que os poderes fácticos do capital detêm, para submeter a ordem as suas necessidades, como levar em conta os novos meios tecnológicos disponíveis, para a resistência e a luta pela efetividade dos direitos fundamentais contidos no sentido da democracia, na sua forma republicana e plebeia.

 


NOTAS

(1) HESSE, Konrad, Significado dos Direitos Fundamentais. In: Temas Fundamentais de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. P. 33.

(2) GENRO, Tarso. Os Fundamentos da Constituição no Estado de Direito. In: Tratado de Direito Constitucional 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. P. 143.

(3) FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de los derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014.

(4) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores. P. 9.

(5) SEPÚLVEDA PERTENCE, José Paulo. O controle de constitucionalidade das emendas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal: Crônica de Jurisprudência. In: Revista Direito do Estado, Tomo 1. Editora Max Limonad.

(6) FERRAJOLI, Luigi. “Derechos y garantias. La Ley del más Débil”. Madrid: Editorial Trotta, 1999. P. 20.

(7) Idem, p. 19.

(8) FERRAJOLI, Luigi. Os fundamentos dos direitos fundamentais: Debate com L. Bacelli, M. Bovero, R. Guastini e outros. Madrid: Editora Trotta, 2001. P. 342.

(9)  FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado Nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 32.

(10) KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado. Buenos Aires: Depalma, 1980. p. 151; GADAMER, Hans-Georg. A ideia do bem entre Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 115.

(11) LAURINDO, Marcel Mangili. O Império da Lei: o Estado de direito entre o liberalismo e o fascismo.  231 p. Tese (doutorado) – UFSC, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação

emDireito, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/229778/PDPC1571-T.pdf

(12) CANOTILHO, J.J. Gomes. MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 1991.

(12) Op. Cit.

(13) FERRAJOLI, Luigi. “Derechos y garantias. La Ley del más Débil”. P. 63