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Do esgotamento à mobilização no trabalho por plataforma

Julice Salvagni, Renato Koch Colomby e Cibele Cheron

Julice Salvagni - Doutora em Sociologia. Professora da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Renato Koch Colomby - Doutor em Administração. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná. Cibele Cheron - Doutora em Ciência Política. Professora Visitante do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.

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Introdução

 

Partindo do entendimento de que o processo de precarização se aprofunda e se intensifica com a chamada plataformização, este ensaio discute as condições de trabalho dos entregadores, categoria que marcou suas reivindicações ante as vulnerabilidades amplificadas no contexto da pandemia de Covid-19. A noção de esgotamento é suscitada como ponto central de uma análise sociopsicológica do trabalho que correlaciona a dimensão macrossocial da economia neoliberal a efeitos nefastos da reestruturação produtiva.

O processo de esgotamento tem a condição de encerrar formas prévias de relação para que, a partir de então, as próprias relações possam se constituir a partir da contingência de suas situações (SAFATLE, 2016). Tal destaque permite pensar que, no caso dos entregadores, o esgotamento pode ter sido a forma pela qual a atividade passa a encerrar uma relação, que até então se constituía com as empresas de trabalho digital. Desde a greve histórica deflagrada em 1º julho de 2020 (EL PAÍS, 2020), vem sendo desnudada uma realidade precária, agravada pela pandemia: trabalhadores atuando à exaustão, sem a necessária proteção, ou dispensados sem qualquer auxílio financeiro (HARVEY, 2020). Vista, aqui, não como uma manifestação tímida, a referida greve possivelmente constitua efeito do próprio esgotamento, mostrando que há um paradoxo neste conceito, capaz de ilustrar a precarização, por um lado, e a mobilização desses mesmos trabalhadores, por outro. Ou seja, ao mesmo tempo em que o esgotamento apresenta a faceta mais cruel do efeito do modelo neoliberal à exploração do trabalho humano, também pode ser visto como um dos mecanismos de reação a essa condição.

E é refletindo acerca desses movimentos que a noção de esgotamento surge e é suscitada neste estudo como ponto central de uma análise sociopsicológica do trabalho, correlacionando a dimensão macrossocial da economia neoliberal aos nefastos efeitos da reestruturação produtiva. No cenário neoliberal, aprimora-se a exploração no trabalho em nome do lucro exponencial e, via plataformas digitais, sofisticando contornos de sutileza às velhas formas de controle do trabalho humano. Entende-se que o esgotamento “não é mero cansaço, nem uma renúncia do corpo e da mente, porém, mais radicalmente, é fruto de uma descrença, é operação de desgarramento, consiste em um deslocamento” (PELBART, 2013: 46). Assim, a presente discussão, de cunho teórico e reflexivo-propositivo, objetiva tensionar a noção de esgotamento em uma categoria analítico-política como uma forma de compreender os modos de r(e)existência da categoria de entregadores plataformizados, partindo do movimento recente de organização coletiva desses trabalhadores no Brasil.

 

  1. Efeitos da reestruturação produtiva nos trabalhadores por plataforma

 

No processo de reestabelecimento do ciclo do capital, há uma reorganização e reestruturação do processo produtivo, em que a classe trabalhadora é atingida material e subjetivamente. O plano material engloba as mencionadas formas de trabalho precário, parcial, terceirizado, subcontratado, no que se pode nominar subproletarização. Já o subjetivo, abarca a transição da acumulação rígida para a flexível, provocando transformações na essência e nas representações do trabalho (ANTUNES, 2006).

Sendo a lógica do neoliberalismo sustentada, entre outros, pela necessidade do lucro exponencial, cuja demanda primeira é suprir o investimento da classe rentista, pode-se considerar que tal modelo econômico também se encontra em esgotamento. A saber, “é quase certo que a acumulação perpétua de capital a taxas exponenciais mediante a criação exponencial de dinheiro acabará em desastre, a não ser que venha acompanhada de outras adaptações” (HARVEY, 2016, p. 217).

O atual desenvolvimento econômico hegemônico, marcado pela concentração de renda e exclusão de direitos elementares, dá-se especialmente pela perda do direito básico ao trabalho formal (SADER, 2000). Essa tendência, que vinha fragilizando os vínculos trabalhistas, acaba por expor os trabalhadores ainda mais à precarização durante a pandemia. No Brasil, o número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou 9,3% entre 2016 e 2018, o que significa mais de 1 milhão de pessoas (PASSOS; LUPATINI, 2020). A desresponsabilização do Estado, que serve de interesse às relações mercantis transnacionais, intensifica a insegurança da classe que vive do trabalho (ANTUNES, 2015; 2011; 2008). Assim, a liberação do capital sem a intermediação de políticas de regulamentação pode “revelar todos os desastres e injustiças que estão em seu âmago” (SADER, 2000, p. 137), trazendo inúmeros prejuízos à saúde do trabalhador.

O Brasil, que já vivia o cenário de múltiplas crises, incluindo a política e a econômica, teve sua situação agravada com a pandemia de Covid-19, chegando à soma de 10,1 milhões de desempregados no 2º trimestre de 2022 (IBGE, 2022). É na confluência entre desemprego, desalento com o mercado formal e o surgimento de novos formatos de trabalho que milhares de trabalhadores buscam alternativas de sobrevivência. Nesse sentido, a conjuntura é fértil para a ocorrência de esgotamento, especialmente quando esse “exige um certo esgotamento fisiológico” (DELEUZE, 2010: 69), tão presente nos trabalhadores submetidos a jornadas extenuantes.

Com a atuação da plataforma estadunidense Uber, em 2014, a dita ‘economia de compartilhamento’ ganhara visibilidade por meio dos chamados ‘aplicativos’ de transporte privado de passageiros. O trabalho intermediado pelo digital, em um primeiro momento, foi tratado como uma aparente conquista da autonomia dos motoristas frente a uma flexibilização do vínculo e da jornada de trabalho. Tal fenômeno, também abordado em teoria pelos conceitos de empreendedor de si mesmo (ABÍLIO, 2019), pode ser identificado na imposição da pejotização ou da informalidade presente no modus operandi das plataformas de mobilidade, por exemplo. As plataformas digitais, apesar de inserção dos trabalhadores produtivamente, ampliaram a insegurança e a desproteção.

O fortalecimento de regras que precarizam as relações laborais só são possíveis, em grande parte, pela característica monopolista das empresas que prestam serviços de entrega. O mercado, no Brasil, centrado na entrega de refeições, é controlado por quatro grandes empresas: iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi. Em 2019, o setor faturou R$ 15 bilhões, o que representou um crescimento de cerca de 20% em relação a 2018. Além do grande impulso ao setor, que pode ser explicado pelo surgimento de novas plataformas e pela capilaridade do sistema, o distanciamento social potencializou a utilização desses serviços (ABRASEL, 2020a; 2020b).

Em 1º julho de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, deflagrou-se a greve. O movimento envolveu entregadores por aplicativos como Rappi, iFood, Uber Eats, Loggi, Glovo e James em pelo menos 13 estados e no Distrito Federal. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza e Salvador registraram grandes manifestações de rua denunciando a exploração desmedida da categoria com a paralisação de carros, motos e bicicletas (DE CARVALHO et al., 2020). A greve responde à precarização extrema do labor dos entregadores de plataformas, que, de forma inédita, reivindicam aumento do valor mínimo recebido por entrega, fim dos desligamentos ou ‘bloqueios’ unilaterais, indevidos ou sem prévio aviso (quando a plataforma deixa de repassar entregas ao trabalhador), cobertura securitária para roubos, acidentes e perda da vida, além do recebimento de uma verba de auxílio para custear a aquisição de equipamentos de proteção e eventuais atendimentos médicos ou hospitalares (CONSIGLIO, 2020). A greve ganhou apoio nas redes sociais, com o compartilhamento das reivindicações da categoria, indicado pela hashtag “#brequedosapps”, com apelos para que os consumidores não realizassem pedidos. Esse encontro, portanto, que é a integração organizada dos trabalhadores, pode ser resultado de um movimento criado a partir da eliminação de possibilidades dado pelo esgotamento que, metaforicamente, também pode ser considerado como um profundo suspiro que culmina em um ‘grito’ que acorda a si e aos demais dizendo “basta!”.

É possível identificar uma polarização no mercado de trabalho, havendo, “de um lado, grupos minoritários, com garantias contratuais, estabilidade, planos de carreira, bons salários etc. De outro, massas crescentes de subempregados, de profissões desqualificadas, desprestigiadas e mal remuneradas” (CATTANI, 1996, p. 30). O contexto heterogêneo do mercado pressupõe diversidade e descontinuidade do trabalho e do emprego, em formas que crescem ao ponto de superar as chamadas formas típicas. A precarização do trabalho e o próprio desemprego, assim, assumem um papel central no sistema capitalista contemporâneo, consequências da reestruturação produtiva (CASTEL, 1999).

Cabe salientar que a lógica da maximização dos ganhos é a de prevalecimento do capital sobre a força humana de trabalho, de sobrecarga dos trabalhadores e trabalhadoras, de adoecimentos físicos e psíquicos, de assédios e submissões pelo medo do desemprego, ou seja, de retorno ao século XIX e ao desvalor absoluto da vida operária, que aqui é sintetizado pelo conceito do esgotamento. Assim, o movimento de precarização é uma nova forma de organização, gerenciamento e controle, que apesar de vir ganhando visibilidade com o trabalho de plataforma, transcende-o e é fruto de décadas de eliminação de direitos, da dispersão global e, ao mesmo tempo, centralização das cadeias produtivas – aliadas à liberalização de fluxos financeiros e de investimento – e do desenvolvimento tecnológico (ABÍLIO, 2020).

Uma rotina de trabalho intensa provoca a perda da noção de tempo e naturaliza o contato com os riscos e banaliza a exposição ao mal, ao precário. É no controle sobre o tempo de trabalho (SENNETT, 2001) em que o sujeito passa a viver sobre a lógica do medo: que aliena, expõe a acidentes de trabalho, oprime e pode levar a crises de ansiedade e depressão. Ao contrário do que muitos supunham, esses regimes de trabalho marcados pela flexibilidade, atacam a rotina em nome da maior produtividade, dando outros contornos ao controle do trabalho, deixando-o mais sutil, mas não menos preocupante e culminando em um empobrecimento da vida.

Nesse emaranhado de processos materiais e subjetivos é que o estado de esgotamento generalizado se torna um sintoma flagrante. Para Pelbart (2013), é necessário um certo grau de sufocamento para que os corpos possam vibrar em uma nova frequência; é necessária certa angústia que faz com que não se aguente mais tudo aquilo que afeta o corpo, a mente e a vida em suas múltiplas dimensões. Por fim, destaca-se que é em um jogo de forças ativas e reativas, que o esgotamento como categoria biopolítica nos leva a pensar que se há tentativa de controle e dominação, há tentativa de resistência. Além disso, importa dizer que entendemos aqui a necessidade de resistência como um ato coletivo, sobretudo, no maquinário capitalista neoliberal. O esgotamento é um termo que revela “de maneira aguda, embora enigmática, a passagem hesitante e não necessária entre catástrofe e criação, bem como a reversibilidade entre o ‘Nada é possível’ e o ‘Tudo é possível’” (PELBART, 2013 p. 39).

Apesar de o personagem descrito por Deleuze e apropriado por Pelbart ser uma figura passiva em um primeiro momento, anulado pela reprodução exaustiva de uma ação sem sentido, ele vai ganhando expressividade e movimento a medida em que vai sendo construído. Tal instância política do agir é contemplada, inclusive, pela noção de agenciamento. Assim, como em um movimento de recapturar a exterioridade, o agenciamento “tende a conter seu fora, e essa exterioridade ‘irredutível’ renasce incessantemente e faz parte do próprio sistema” (PELBART, 2013, p. 42). Com isso, o possível deixa de ficar confinado no domínio da imaginação e se torna coextensivo à realidade na sua produtividade própria. Criada a brecha para movimento de insurreição ou de revolução, inverte-se a relação entre o acontecimento e o possível. Tais momentos, “sejam individuais ou coletivos (como Maio de 68), correspondem a uma mutação subjetiva e coletiva em que aquilo que antes era cotidiano se torna intolerável, e o inimaginável se torna pensável, desejável, visível” (PELBART, 2013, p. 45).

Deleuze (2010, p. 67), destaca que o esgotamento é muito mais do que o cansaço. O cansado “não dispõe mais de qualquer possibilidade (subjetiva) – não pode, portanto, realizar a mínima possibilidade (objetiva)”. Tal extrato dá a noção de que o cansaço é algo inerente ao exercício da força de trabalho. Assim, ao ser passível de descanso, não é exatamente uma possibilidade, no sentido criativo da mobilização racional. Por outro lado, o “esgotado esgota todo o possível”, fazendo com que não surja outra possibilidade no círculo de variações que opera por meio da exclusão. Bem diferente do cansaço, portanto, está o esgotamento. Este último “combina-se o conjunto das variáveis de uma situação, com a condição de renunciar a qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação. Não é mais para sair nem para ficar, e não se utilizam mais dias e noites” (DELEUZE, 2010, p. 69). Tal referência pode ser alusiva à realidade de trabalho dos entregadores nas plataformas. A falta de contorno ao trabalho nessa mediação das plataformas, somada ao fato de a baixa remuneração levar a exaustivas jornadas, ou mesmo a sobreposição de distintas atividades remuneradas, permite pensar em essa renúncia referida por Deleuze. Neste sentido, o caráter paradoxal do conceito permite assumir a perda de sentido da ação, ao pensar que “apenas o esgotado é bastante desinteressado, bastante escrupuloso. Ele é forçado a substituir os projetos por tabelas e programas sem sentido” (DELEUZE, 2010, p. 69).

Por outro lado, há no esgotamento as possibilidades do devir, já que nessa experiencia rizomática, a força colocada em questão gera um movimento, um turbilhão, com possibilidade de criação de devir revolucionário. Neste sentido, quando acontece o esgotamento, surge uma potencialidade. A potencialidade “é um duplo possível. É a possibilidade de que um acontecimento, ele próprio possível, se realize no espaço considerado. A possibilidade de que alguma coisa se realize, e de que algum lugar o realize” (DELEUZE, 2010, p. 69). Há, portanto, quatro funções do esgotamento que Deleuze reconhece a partir da análise de Beckett: “primeiro lugar, o esgotado cria séries exaustivas das coisas; em segundo lugar, ele estanca os fluxos de vozes; em terceiro lugar, ele dissipa a potência da imagem e, finalmente, o esgotado extenua as potencialidades do espaço” (DE VIVVAR, 2017, p. 6). Em se tratando especificamente dos entregadores de plataformas, avaliando o futuro do movimento, “talvez o desafio resida no plano da articulação e interlocução entre o sindicalismo já constituído e as novas formas de mobilização, uma vez que existem associações e sindicatos que representam parte da categoria” (DE CARVALHO et al 2020, p. 23).

Ou seja, o legado dos movimentos sindicais no Brasil indica ter tido um papel decisivo a essa outra forma de mobilização, não me menos legítima, mas que ainda precise se constituir em um outro espaço. É indicado que tal forma de mobilização que incorpore as mudanças recentes na forma de trabalhar, contemplando as nuances provocadas pelo advento da tecnologia e pela precarização contina da perda do vínculo de trabalho. Mas, além disso, cabe uma preocupação estratégica em relação aos conchaves corporativos, midiáticos ou políticos que seguem buscando invalidar, reprimir e marginalizar a luta operária. A plataformização do trabalho vem para promover o que Harvey descreve como sendo o ajuste espaço-temporal, que é uma metáfora das soluções para as crises capitalistas. Ou seja, se trata de novos “arranjos institucionais capitalistas (regras contratuais e esquemas de propriedade privada) em formações sociais preexistentes” (2004, p.102, tradução livre) que, neste caso, traz modos distintos da velha forma de explorar os excedentes de trabalho.

Assim, no contexto contemporâneo, infere-se aqui que o esgotamento está: i) no modelo neoliberal que, ao depender de um crescimento exponencial ao infinito, já encontra-se com um limite em termos da exploração do trabalho humano e, ainda, dos recursos naturais usados de modo indiscriminado; ii) nos sujeitos que vivem do trabalho, especialmente em um contexto de precarização, que se veem em situação de exaustão dada às longas jornadas, à baixa remuneração e às condições insalubres; por fim, iii) a noção de esgotamento, dada a sobreposição destes fatores, consegue deslocar os sujeitos a um movimento de devir revolucionário, que possivelmente não poderia ser pensado em uma condição de ‘possível’, usando uma nomenclatura deleuziana.

 

  1. Considerações finais

 

O trabalho por plataformas digitais é um modo de organização que tem encontrado no contexto brasileiro terreno fértil para sua expansão. A plataformização vem a se aproveitar do trabalho atrelado à sobrevivência na captura da parcela cada vez mais crescente de desempregados na população e das pessoas que beiram o mercado formal de trabalho. Não obstante, as crises econômicas e políticas ao longo da história vem acompanhadas de tensões das estruturas sociais, as quais acentuam as diferenças e os conflitos preexistentes, tanto étnicos quanto socioculturais, que atingem a sociedade e os indivíduos. O tempo atual, cuja marca de aceleração, especialmente na relação com o trabalho, parece ser ponto de consenso, coloca as plataformas digitais na condição no protagonismo. Se o trabalho humano segue sendo explorado conforme descrito por Marx; a novidade que surge com o advento da tecnologia são as formas perspicazes e sutis de atribuir um controle.

Neste sentido, há um cenário de falência do modelo neoliberal, que só ganhou algum fôlego com a entrada das plataformas digitais intermediando a exploração das corporações ao trabalhador. Ou seja, um modelo que depende do lucro exponencial e que pareceria estar chegando ao seu limite, conseguiu agora, mais uma vez, novo fôlego. Ao trabalhador, contudo, resta a sobrecarga exponencial que, no caso dos entregadores por plataforma, chegou a um limite. Neste sentido, o esgotamento, que é físico, psíquico e emocional, foi traduzido em luta operária, como foi o caso da greve de julho de 2020. Curiosamente, as ferramentas digitais, que tanto servem para acelerar e controlar o trabalho, também foram usadas a serviço da mobilização.

Dessa forma, na crise sanitária da pandemia da Covid-19, os elementos do esgotamento são observados, enfatizando os danos às parcelas vulneráveis da população. Já em um cenário de estreitamento dos direitos sociais por parte do Estado e, concomitante a isso, na imersão de um modelo neoliberal centrado em um produtivismo desmedido, a atual pandemia, tende a aumentar as desigualdades sociais e econômicas na sociedade brasileira, penalizando ainda mais o trabalhador. Sem a garantia dos direitos sociais e com altos índices de desemprego, a intensificação da exploração do trabalho é facilitada. Entre a “escolha” de padecer de fome ou adoecer em jornadas exaustivas de trabalho, os limites da dignidade humana vão se estreitando, dando margem à barbárie.

A problemática em torno dos direitos e da precarização do trabalho, sobretudo, dos entregadores por plataformas é um tema atual e pertinente para o futuro das organizações. Cabe considerar que, apesar da categoria trabalhar de forma completamente desprotegida em termos legais e não consolidar vínculo trabalhista, ainda assim, uma organização dos entregadores foi possível. Os mesmos meios digitais que serviram como ferramenta para impulsionar um massivo movimento de trabalho informal, também deram suporte às recentes organizações sindicais que estão acontecendo via redes sociais.

Há no trabalho digital o aprofundamento de características como a submissão livremente consentida e formas sutis de poder que produzem outros modos de controle da atividade laboral. Assim, é possível inferir que, apesar de a nova morfologia propiciar rupturas com os modelos burocráticos de gestão, o controle no e pelo trabalho não só não se extinguiu, como passou a assumir formas veladas de poder. Ou seja, o trabalho, apesar de ser mediado por um universo digital, segue sendo concreto, material, braçal e ainda mais alienante que um modelo fabril. Ainda, essa reformulação dos modos de sistematização organizacional que levam à exploração sutil do trabalhador sugere a necessidade de um direcionamento das pesquisas cuja abordagem elenque aspectos específicos de controle no trabalho em plataformas digitais.

Por fim, destaca-se que a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil já encontrando um país assolado pelas desigualdades sociais, vivenciando a fase de financeirização da vida no modelo neoliberal, cujo pacote de práticas incluiu, ao longo das últimas décadas, a perda de direitos sociais. Nesse contexto, a situação dos trabalhadores desprotegidos, precarizados e informais tornou-se desoladora – ou seja, chegou à condição de esgotamento. Compreendendo esta crise sanitária como parte de um arranjo geopolítico de proporções globais que impacta significativamente as organizações, esse ensaio tratou dos entregadores como apenas uma das tantas categorias que poderiam ser abordadas para elucidar as condições precárias de trabalho em um contexto de enxugamento do Estado e de expansão neoliberal.

 

Referências

 

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