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Configuração do sistema de proteção social brasileiro e seus desafios: um olhar para o Sistema Único de Assistência Social no contexto de pandemia

Marcia Helena Carvalho Lopes (1), Maria Luiza Rizzotti (2) e Jucimeri Isolda Silveira (3)

(1) Professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina / (2) Pesquisadora da FAPESq-PB/CNPq. Mestre e Doutora pela PUC/SP / (3) Doutora em Serviço Social (PUCSP), Mestra em Sociologia (UFPR)

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Introdução

O presente artigo coloca a reflexão sobre a necessidade de se pensar prospectivamente sobre o modelo de oferta protetiva e de garantia de direitos humanos e sociais, sobretudo localizando o lugar das seguranças afiançadas pelo Sistema Único de Assistência Social. A escolha do tema reconhece que esse campo protetivo adensou novos direitos e tem potencial de contribuir – sobretudo na sua organização local e territorial, com a necessária articulação das proteções sociais, partir da integralidade da proteção social.

Alguns aspectos são essenciais para elucidar a posição posta aqui, e dentre eles destacam-se: (i) a compreensão de que as políticas sociais e o modelo protetivo guardam profunda relação com o modo de organização econômica dos estados nacionais e que, portanto, não são portadores por si só de condições de superar de vez as desigualdades por ele produzidas; (ii) todo e qualquer movimento pela ampliação do sistema protetivo traz incrustada uma disputa ideológica, dinamizada por projetos políticos coletivos, cujos lados se firmam em pressupostos antagônicos quanto ao papel e o grau de interferência do Estado, tanto para gerar a pobreza/desigualdade/desproteção, quanto para superá-las. Desse modo, todo o processo de estruturação das políticas sociais estão eivadas cotidianamente de um campo de disputa política; (iii) a análise do momento atual e as prospecções não podem prescindir de uma leitura histórica, ainda que apenas com foco em aspectos estruturantes, para que se compreenda os avanços e retrocessos inseridos nos diferentes projetos de desenvolvimento social e econômico; (iv) mesmo uma leitura rápida de um determinado campo de proteção deve considerar que sua trajetória em um país como o Brasil com forte tradição patrimonialista e liberal, traz fissuras internas e, dentre elas o difícil convívio de velhos e novos paradigmas; e (v) não é possível avaliar uma área nova de proteção que se coloca sob a égide de um modelo universal, integralizado e participativo de ofertas e gestão, sem considerar as amarras da estrutura burocrática do Estado brasileiro, assim como os efeito da colonialidade. Por burocrática leia-se muito mais do que os empecilhos administrativos, mas um sistema de dominação e alienação.

Nessa linha, esses riscados pretendem anunciar a necessidade de resistir e lutar em torno de direitos afiançados e novas conquistas, mesmo diante das intempéries econômicas, políticas e éticas dos dias atuais. Para tanto, o caminho da exposição, inicia pelo marco da Constituição Federal de 1988 que inaugura as bases para o estado social, com uma rápida análise das possibilidades do tempo que se seguiu. Em seguida, apresenta o desenho do Sistema Único de Assistência Social, trazendo luz aos novos direitos e seguranças que ele preconiza e, considerando o contexto de crise provocada pelo novo coronavírus, por fim, aponta os desafios diante da realidade dos dias atuais, ao mesmo tempo que anuncia alguns caminhos prospectivos,

 

1. Caminhos políticos e institucionais da construção do sistema de proteção social brasileiro

Ao longo de sua história o Estado Brasileiro foi marcado por omissão no que concerne à proteção social, tendo como marco e ruptura nessa característica a Constituição Federal de 1988, que reconhece a responsabilidade estatal na proposição e primazia de um conjunto de proteções sociais. As diretrizes propostas no texto constitucional orientaram a formação de um modelo de proteção configurado por: universalização de acesso; pacto federativo do tipo cooperativo na relação do governo federal com as subnacionais; descentralização político administrativa; e participação social. Colocou-se, do ponto de vista normativo-jurídico e programático, a possibilidade de ruptura de paradigma do que se havia instituído até então, cujas marcas eram o privativismo, a focalização, a seletividade, a prevalência da proteção contributiva e do trabalhador formal.

Nesse sentido, ainda que no campo legal e normativo o Brasil, ao final da década de 1980, ao desenhar um Estado Social, amplia-se o conceito de seguridade social, e são criadas as bases para a instalação de sistemas protetivos capazes de alcançar diferentes públicos e realidades. Mesmo com essa definição legal, foi longo e com muitos percalços o caminho para se iniciar a estruturação de, pelo menos parte do que os cidadãos brasileiros passaram a ter como direito protetivo. Uma das barreiras mais importantes foi o contexto político de então, com a ascensão ao poder de um projeto político compromissado com a égide neoliberal, reforçado pelos caminhos do cenário internacional e os organismos orientadores (mandatários de modelos econômicos e social) para o Brasil e demais países com economia “dependente”. Foram pelo menos uma década e meia de tensões entre os movimentos e organizações que sonharam, idealizaram e colocaram no texto constitucional um novo patamar de responsabilidades do Estado Brasileiro e os grupos representando uma elite tacanha e sem compromisso com a solidariedade e democracia.

Essas tensões nesse interregno temporal resultaram, pelo menos, na construção de leis infraconstitucionais que permitiram a organização e estruturação dos sistemas únicos estatais, a exemplo da saúde, com o SUS, da assistência social – SUAS, o SISAN, para a áreas de Segurança alimentar e nutricional, o SINASE que organiza a atenção aos adolescentes em medidas socioeducativas. No entanto, essas estruturas se consubstanciam e ganham melhor envergadura a partir do início dos anos 2000, com a chegada ao poder do partido dos trabalhadores, que trouxe em sua bagagem intelectuais e trabalhadores que fizeram o desenho e luta política em torno de novo modelo protetivo.

Em que pese esse desenho de organização das diferentes políticas setoriais permitir uma estruturação federativa e integralizada em todo o território nacional e organizar um modelo de financiamento pactuado com todos os entes federados, ainda não se pode construir um sistema protetivo absolutamente integrado. Mesmo o sistema de seguridade social que integra as políticas de previdência, assistência social e saúde, permaneceu o desafio político e programático, de efetiva integração com a política de emprego, trabalho e renda, assim como a educação, a cultura, políticas de direitos para mulheres, LGBTI+, juventude, dentre outras. Sendo assim, há um vácuo de integração tanto nas esferas nacional e estadual, mas sobretudo na esfera municipal, onde as ofertas e provisões se concretizam, demonstrando, assim, frágil integralidade na formulação, implementação, gestão e prestação de serviços sociais relacionadas às políticas sociais setoriais e de defesa de direitos, sendo funcional à reprodução da desigualdade social, ético-racial, de gênero, sexual, territorial.

A análise sobre a trajetória histórica das políticas públicas no Brasil, especialmente as sociais, dentre elas a Assistência Social, permite a identificação de processos tardios e inconsistentes, produzidos em períodos de autoritarismo e de ideologias desenvolvimentistas. O que se identifica no histórico de formulação de políticas públicas, é a combinação predominante de disciplina e moralização da pobreza; controle de improdutivos e incapacitados; ineficiência, frágil alcance social, com sobreposição de competências e processos de descontinuidades, aspectos funcionais e reprodutores da própria desigualdade (SILVEIRA, COLIN, 2018). Ademais, o que prevaleceu historicamente é uma dinâmica de tratamento repressivo das necessidades sociais, tratadas no interior dos aparelhos repressivos do Estado como disfunção pessoal dos indivíduos (SPOSATI, 1992). De outra face, o SUAS, construído com participação social, avançou no sentido de romper com tais lógicas. Daí a importância da afirmação de sua institucionalidade, atualizada para os desafios impostos pela crise pandêmica.

A construção da política de assistência social exigiu a identificação das atribuições públicas face às necessidades e demandas sociais que devem ser atendidas por meio de ofertas contínuas, uniformes e reivindicáveis, e contar com um conjunto de aportes: equipamentos públicos, recursos humanos, financiamento regular, rede integrada de serviços e sistemas de informação e monitoramento (COLIN e JACCOUD, 2013)

O Sistema Único de Assistência Social é um dos mais importantes avanços na história recente da democracia, na medida em que efetivamente traz para dentro do escopo protetivo um grande contingente populacional que nunca foi reconhecido como sujeitos de direitos de seguranças de renda e de serviços. A política pública de assistência social reconhece que a desigualdade é produzida econômica, social e politicamente por um modelo de produção fabricante da questão social, compreendida como resultado da desigualdade entre as classes socais, respostas do Estado e da sociedade, assim como das formas de resistência, organização e luta. Desse modo, suas expressões cotidianas revelam ausência e insuficiência na provisão de renda suficiente para a sobrevivência, e outros agravos advindos do lugar e das condições da classe trabalhadora na sociedade brasileira.

Essa política pública também reconhece que as condições de pobreza e vulnerabilidade, ainda que com um grande impulsionamento do acesso (ou não) à renda, trazem outras dimensões materiais e imateriais que precisam de respostas protetivas e de recuperação de condições de vida dentro de marcos civilizatórios. Além disso, os/as cidadãos/ãs a quem se destinam as provisões da política de assistência social têm, em sua maioria, a condição de vida agravada por desproteções em outras áreas da vida (educação, saúde, habitação etc.) e, por conseguinte, da ausência ou insuficiência do Estado na suas trajetórias e histórias.

Pautado nessas premissas de desculpabilização dos sujeitos individualmente por sua condição; de responsabilidade do Estado em garantir direitos e proteções; do reconhecimento de desigualdades nos muitos territórios brasileiros e dos diferentes grupos populacionais, é que se erigiu um Sistema Único de Assistência Social, cujas principais características que marcam seu modo de proteger serão descritas a seguir.

Ao Sistema Único de Assistência Social são atribuídas as funções de: Proteção Social; Vigilância Socio Assistencial; e Defesa de Direitos. Tais funções constroem um novo campo protetivo ao oferecer seguranças socioassistenciais. São elas: segurança de renda; segurança de acolhida, segurança de convívio, segurança de autonomia e segurança de apoio e auxílio. Esse conjunto de seguranças dão concretude ao um novo paradigma que rompem com o passado, ao mesmo tempo que criam novas proteções. A segurança de renda, reconhece e, ao mesmo tempo, autoriza o Estado propor diferentes ofertas de transferência de renda como é o caso do Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada[4]. Além de sugerir a outras instâncias federativas (estados e municípios) a também ofertarem essa segurança com benefícios monetários continuados, em que pese não serem muitas as inciativas nessas instâncias. Outro aspecto a ser considerado é a forma como a transferência de renda foi instituída, sem a articulação necessária e intrínseca na esfera nacional, pois o BPC passou a ser operado pela rede do INSS e o Programa Bolsa Família se organizou em separado da Secretaria Nacional de Assistência Social, em que pese nos municípios esse programa é gerido pelo SUAS.

Em que pese essas dificuldades de organização, dois pontos merecem destaque. O primeiro diz respeito ao fato de que o Brasil cria bases legais para a transferência de renda, além de garantir capilaridade e estrutura. No quesito estrutura vale salientar o importante papel do Cadastro Único que se constituiu uma importante ferramenta de diagnóstico e planejamento para diferentes programas sociais (não apenas o Bolsa Família) e, identificou a parcela da população brasileira que mais necessita do alcance protetivo do Estado. Outro aspeto é a efetiva garantia de renda a aproximadamente 14 milhões de famílias que estavam desprovidas desse direito e tudo o que o acompanha no que concerne à prioridade de inclusão nas demais políticas sociais, em especial educação e saúde. Já existem inúmeros estudos que indicam os resultados de reconhecimento e desfrute de direitos sociais para essa grande parcela da população.

A Segurança de Acolhida reorganizou toda a antiga rede de acolhimento institucional sob uma nova marca humanizada e com preceitos de direitos sociais. Mesmo convivendo, em sua maioria com uma rede não governamental e de caráter vocacional, o SUAS passou a definir parâmetros e regras a serem cumpridos, trazendo para a esfera pública e à luz do controle social o que antes estava sob a circunscrição do mundo privado e religioso com a mais profunda expressão da tutela conservadora e repressora.

Essa intersecção entre o velho e o novo ainda não está vencida, pois, em que pese uma normativa moderna, republicana nos marcos dos direitos humanos, ainda se convive com uma lógica conservadora, liberal, colonialista na sociedade que penetra e adentra as estruturas, desafiando projetos democráticos e emancipatórios, para dotem os espaços institucionais de conteúdo ético-político em direitos humanos em perspectiva decolonial. Isso torna a institucionalização desse sistema público de assistência social um campo de tensionamentos e de disputas entre a moralidade repressora e a concretização de velhos e novos direitos.

A Segurança de convívio conversa diretamente com o passado da política de assistência social, pois faz frente ao processo de institucionalização de seguimentos empobrecidos com vínculos familiares frágeis que, por longos anos foram supostamente protegidos com confinamentos que mais provocavam horrores do que proteção. A segurança de convívio reconhece o direito de proteção a famílias e comunidades de terem seus laços afetivos e de integração sob o alvo de uma política pública que não mais olha para os cidadãos individualmente, mas para os seus grupos de sociabilidade (primária e/ou secundária). A segurança de convívio reserva uma força e um foco no coletivo, pois reconhece que os cidadãos têm que ser reconhecidos em sua coexistência, exigindo dessa política pública realizar a travessia da atenção individual para a coletiva, com o reconhecimento de especificidades.

Essa dimensão territorial guarda importante potencial de integração do sistema protetivo em nível local, construindo uma rede de oferta de direitos sociais em todas as áreas que integradamente intensificam a capacidade de desenvolvimento sob a perspectiva de econômica, social e política, ainda que restrita e com os limites da realidade local. A relação entre as cidades e os territórios que as compõem exigem uma leitura integralizada de direito à cidade, à sociabilidade e ao acesso aos bens socialmente produzidos, reconhecendo nas periferias seu potencial de resistência e luta, ao mesmo tempo que identifica suas diferenças e vazios protetivos.

As Seguranças Socioassistenciais se concretizam pela organização de uma rede de serviços, sendo que uma parte é totalmente nova (os que figuram no campo da proteção social básica e especial de média complexidade. Os serviços e benefícios instituindo uma nova rede pública governamental de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e de Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

O SUAS atingiu um patamar significativo de presença protetiva nos territórios. Foram instalados mais de 8.300 Centros de Referência de Assistência Social – CRAS. São mais de 21 milhões de atendimento por ano. Soma-se mais de 1,6 milhões de atendimento dos mais de 2.700 Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS e nos Centros Especializados de Atendimento à População de Rua (Censo SUAS, 2017).

Por meio da rede de serviços do SUAS, milhões de famílias, como as mais de 14 milhões, acessaram o Programa Bolsa Família, seja pelo cadastramento, acompanhamento das condicionalidades, inserção em serviços, programas ou projetos, assim como nas demais políticas públicas e organizações da sociedade civil que são vinculadas à Assistência Social. Importante afirmar, que o congelamento de recursos tem, inclusive, prejudicado o acesso em situações emergenciais para esse benefício, como as situações de trabalho infantil.

A Assistência social viabiliza proteção para mais de 4,6 milhões de beneficiários do Benefícios de Prestação Continuada – BPC, possibilitando renda às pessoas com deficiência e às pessoas idosas. Os serviços e benefícios da Assistência Social realizam milhares de atendimentos diários para as situações de nascimento, morte, vulnerabilidade temporária, emergência e calamidade pública, tendo em vista a vulnerabilidade, a desproteção, o desemprego, os desastres ambientais, outras situações emergenciais, a exemplo da pandemia pelo novo corona vírus (COVID-19), onde a Saúde e a Assistência Social são consideradas legalmente políticas essenciais.

Estratégias de proteção social básica foram implementadas, como as equipes volantes, para a ampliação do atendimento a populações específicas e territórios extensos, isolados, áreas rurais e de difícil acesso. Cerca de 1.400 Equipes foram cofinanciadas em 2011 e 2012; as Lanchas da Assistência Social viabilizam o acesso a populações em locais distantes e acessíveis apenas por via fluvial/marítima. Foram implantadas 138 Lanchas, sendo 15 oceânicas (Censo SUAS, 2017). Tais estratégias, atualmente congeladas quanto à expansão e cofinanciamento, possibilitam acesso a direitos para comunidades tradicionais, ribeirinhas, povos indígenas, em cumprimento a preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito.

A partir dos parâmetros do Plano Decenal, reforça-se a importância da assistência social no enfretamento das desigualdades, com integralidade de direitos e proteções. Trata-se de uma política central para a viabilização do acesso à benefícios, proteção não contributiva que complementa ou substitui renda; proteção, cuidado e tutela em situações de direitos violados; desenvolvimento de projetos de vida, convivência e proteção no âmbito dos serviços, com acesso a demais direitos; visibilidade das desigualdades, vulnerabilidades e desproteções sócio territoriais; atuação intersetorial para a garantia dos direitos e da proteção social nas cidades.

Há um amplo leque de serviços que estão desenhados e regulamentados por resoluções do Conselho Nacional de Assistência Social, sobretudo a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais, expressa na Resolução 109/2009, que se tornou um marco, na medida em que uniformizou toda a rede em todo o território nacional em todas as dimensões (nomenclatura, público alvo, objetivos, provisões, estrutura física e de pessoal, dentre outras). Assim, o SUAS vai se consolidando com ampla participação dos trabalhadores desse sistema, além da importante indução orientativa e financeira da esfera governamental entre os anos de 2004 a 2015. Foram 11 anos de crescimento acelerado.

Como sistema público estatal, o SUAS atingiu, portanto, um patamar importante de desenvolvimento, com centralidade em responsabilidades comuns e compartilhadas para a prestação de serviços à população. Em seu mais recente ciclo de implementação, para acelerar a universalização do direito à assistência social, adotou-se o Pacto de Aprimoramento do Suas como um dispositivo de cooperação interfederativa, para avançar e acelerar patamares de desenvolvimento, a partir de prioridades e metas, mantendo-se as previsões estruturantes, como o comando único, existência e pleno funcionamento de conselhos, planos e fundos de asistência social.

No campo da gestão do SUAS os avanços também foram muitos irrompendo com práticas consolidadas desde o estado patrimonial brasileiro. A marca mais importante foi a localização desse sistema na esfera governamental com demarcação republicana e participativa. Estruturou-se uma de suas funções a Vigilância Socioassistencial como demarcadora de gestão pautada em diagnósticos e de aprofundamento profissional. O sistema de financiamento superou a marca convenial e ser estruturou na esteira de fundos especiais com repasses entre as esferas governamentais de Fundo a Fundo de forma regular e automática.

No campo do financiamento, não apenas a modalidade de repasses se modificou, mas também o montante de aportes financeiros passando, nos anos de instituição do SUAS de 21.425 milhões para 85.469 milhões de reais em 2016 (SALVADOR & COURI, 2017), indicando uma variação de 299% com nova marcação na disputa do fundo público que, nesse período deu concretude à ampliação do sistema protetivo.

Todavia, vale destacar que, após o golpe de 2016, tem-se assistido ruir a espinha dorsal desse sistema, não apenas na esfera do financiamento, mas também das instâncias deliberativas também consolidadas no período de organização do SUAS. Uma organização participativa se formou em todas as esferas de governo com a instituição de Conselhos deliberativos, Comissões gestoras, como as Comissões Intergestortes Tripartite (CIT) e Comissões Intergestortes Bipartite (CIB) e Órgãos Colegiados (Fórum de Gestores de Estado de Assistência Social – FONSEAS e Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social – CONGEMAS, nesse caso com replicações estaduais – COEGEMAS). Esse conjunto foi formatando um modelo participativo que foi sendo adensado pelas organizações e representações de trabalhadores e usuários.

O que está em jogo nos dias atuais, diante dos ditames de um novo governo autoritário, conservador e ultra liberal é a capacidade de resistência do sistema de proteção, sobretudo o SUAS que, em que pese seu atual estágio de consolidação tem sofrido os mais profundos golpes e, ao mesmo tempo exigido de seus sujeitos e de parcela da sociedade diferentes formas de resistência.

 

2. Cenário de crise e desafios

O cenário atual, entretanto, revela tendências regressivas provocadas pela assunção da programática neoliberal, que busca reduzir ao máximo, o Estado em suas funções e a garantia de direitos, integrado a um projeto político conservador que conflita com o projeto democrático e republicano de nacionalização do direito constitucional à Assistência Social.

A crise provocada pelo novo coronavírus escancara a falência do modelo ultra neoliberal, especialmente pela vigência de um sistema público congelado e em desmonte, com flagrante fragilização das instâncias de pactuação e deliberação, contrariando a democracia participativa e deliberativa afirmada constitucionalmente (SILVEIRA, 2020). Ao mesmo tempo, a resistência e a reafirmação de uma agenda política em defesa do SUAS, ocupa a esfera pública do Estado, revelando potencial de fortalecimento da retomada de um projeto popular de Assistência Social.

A Assistência social está em risco evidente, assim como a arquitetura do sistema de proteção social e a garantia dos direitos constitucionalizados nos marcos do Estado Democrático de Direitos, assim como as possibilidades de novos direitos engendrados no necessário processo de descolonização do Estado e da sociedade (SILVEIRA, 2017). Não obstante, a descontinuidade no processo de aprimoramento do SUAS, com absoluta fragilização das condições políticas e institucionais necessárias para sua consolidação, em consonância com o II Plano Decenal (2016/2026), a resistência é parte do processo contraditório e deve ser potencializada nos processos de contra hegemonia (LOPES, RIZZOTTI, 2020).

Dentre as ameaças ao SUAS, destaca-se o desfinanciamento acelerado, por meio da Emenda Constitucional nº 95/16, que congela os recursos por 20 anos, a instabilidade na aprovação e garantia de recursos financeiros, tendo em vista a não regularidade e insuficiência no repasse fundo a fundo de recursos ordinários, bem como medidas que buscam adequar o orçamento ao projeto de ajuste fiscal, como a Portaria nº 2.262 do Ministério da Cidadania, de 20 de dezembro de 2019, tendo em vista seus efeitos de redução de recursos, equalizados conforme disponibilidade orçamentária anual, no repasse das parcelas do Fundo Nacional de Assistência Social aos Fundos Municipais, em detrimento das garantias constitucionais e legais.

Importante dizer, nesse sentido, que a Assistência Social como política que compõe a proteção social mais ampla, impõe o desafio de integralidade e indivisibilidade dos direitos e da proteção social. A concepção de um Sistema de Proteção Social, amplo, democrático, estatal redistributiva e com serviços integrados e de qualidade, norteia a defesa da necessária articulação do direito socioassistencial com os demais direitos de proteção social, além das reformas estruturantes, como a tributária e agrária, para o enfrentamento das desigualdades, especialmente étnico-racial, de gênero e social. Tal compreensão ampla e contextualizada dos direitos e da proteção social brasileira, deve balizar a agenda política dos movimentos sociais, das entidades e demais atores.

O contexto de pandemia exigiu uma agenda urgente por parte da Frente Nacional em Defesa do SUAS, de um conjunto de Entidades e Movimentos Sociais identitários e territorializados, dos Fóruns de Trabalhadores e Usuários do SUAS, dos Colegiados Nacional de Gestores/as Municipais e Estaduais de Assistência Social, de gestores e profissionais da Assistência Social do Consócio do Nordeste, Frentes Parlamentares e dos Conselhos de Assistência Social. Tais organizações, lideram a resistência no campo da institucionalidade do SUAS. Ao mesmo tempo, se integram em coalizões nacionais e internacionais pela Revogação da EC 95/15, em defesa da radicalização da democracia, do enfrentamento das desigualdades, por cidades e territórios mais protegidos, participativos e humanos. Processo que precisa ser pontecializado e disseminado em sociedade, para a retomada da construção coletiva da proteção social brasileira, a partir de um projeto societário efetivamente democrático.

 

Considerações finais

As agendas e ações em defesa do SUAS, diante do golpe e da crise sanitária, econômica e social, visam a consolidação da institucionalidade construída de modo participativo, assim como a construção de avanços. É preciso retomar o pleno funcionamento das instâncias do sistema, o restabelecimento de suas bases estruturantes (comando único, repasse automático e regular fundo a fundo; pactuações e expansão qualificada; instâncias em pleno funcionamento; serviços tipificados, regulações); a manutenção de serviços e expansões que enfrentem desproteções, violações e desigualdade. Evidentemente, que tais defesas estão inscritas nas lutas mais gerais por direitos e democracia no Brasil, por uma Seguridade Social universal e pública, por sistemas estatais, pela revogação de reformas e medidas que reduzem direitos e políticas sociais.

A crise e o contexto de pandemia, confirmam a necessidade histórica de um sistema de proteção social, com capacidade de prover serviços e benefícios, proteção e cuidado, de modo integralizado; prevenir e reverter violações; identificar potencialidades territoriais e promover impactos que reduzam desigualdades e violências; garantir uma governança com pactuações, fundo público e arranjos institucionais, transformadores e descolonizadores de territórios e cidades.

A organização política do SUAS expressa a força social que pode ser potencializada, na coalizão de agendas de entidades, organizações e movimentos sociais. Trata-se de uma agenda produzida no campo democrático e popular, com sujeitos coletivos e de direitos, com reafirmação da institucionalidade do SUAS, mas com o alargamento de novas lutas sociais, no enfrentamento das desigualdades e violações, e em defesa dos direitos, da democracia, de um Sistema de Proteção Social que tenha como horizonte uma sociedade humanamente livre e socialmente igualitária.

 


[1] Professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina, Mestra em Serviço Social (PUCSP). Ex Ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do Governo Lula. Consultora Internacional do Sistema ONU, compõem o Comitê Técnico da Assistência Social do Consórcio Nordeste e a Frente Nacional em Defesa do SUAS. Compõe a atual gestão do CRESSPR.

[2] Pesquisadora da FAPESq-PB/CNPq. Mestre e Doutora pela PUC/SP. Professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina. Ex Secretária Nacional de Assistência Social.

[3] Doutora em Serviço Social (PUCSP), Mestra em Sociologia (UFPR), professora do Curso de Serviço Social e do Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUCPR, Coordena a Área Estratégica e o Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR. É professora colaboradora no Doutorado de Humanidades na Universidade Católica de Moçambique. Compõe a atual gestão do CRESSPR e a Frente Nacional em Defesa do SUAS.

[4] O Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) é um benefício socioassistencial de um salário mínimo mensal à pessoa com mais de 65 anos  e à pessoa com deficiência, cuja renda per capita familiar é inferior a 1/4 do salário-mínimo.

 

Referências

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