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Colocar o dinheiro onde é preciso

Ladislau Dowbor

professor de pós-graduação e economia e administração da PUC de São Paulo, consultor de várias agências da ONU, e autor de numerosos livros e estudos técnicos disponíveis em http://dowbor.org.

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O primeiro ponto a levantar é que o problema do Brasil não consiste em falta de recursos, e sim na sua absurda alocação. O valor dos bens e serviços produzidos anualmente, o PIB, foi de 7,5 trilhões de reais em 2020. Este valor, dividido pela população, equivale a 12 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Ou seja, por pouco que se reduza a desigualdade e que se racionalize a alocação dos recursos, temos amplamente o suficiente para todos viverem de maneira digna e confortável. Esse dado é fundamental, pois mostra que o nosso problema não é econômico, no sentido de falta de recursos, e sim de desorganização política e social, de falta de governança.

Um segundo ponto é que o bem-estar das famílias depende em parte apenas do dinheiro disponível, e que serve para consumo individual, como pagamento de aluguel, compras e semelhantes. Tipicamente, o consumo individual cobre 60% das necessidades, e os outros 40% constituem consumo coletivo, acesso a serviços como saúde, educação, segurança, parques, ruas asfaltadas e outros serviços sociais e ambientais de acesso público. A dinamização da economia local depende do equilíbrio desses dois tipos de aportes, com acesso à renda e aos bens e serviços públicos. Isso é importante, pois a pandemia por um lado privou grande parte da população do acesso à renda, enquanto a lei do Teto de Gastos reduziu o acesso às políticas sociais, fragilizando ainda mais as famílias.

A dinamização da economia local no seu conjunto, e em particular das empresas locais, é assim duplamente afetada pela fragilização das famílias. Um terceiro ponto importante, numa visão mais ampla, é o desperdício do potencial de crescimento econõmico e social. O Brasil tem 212 milhões de habitantes, dos quais 148 em idade ativa (entre 15 e 64 anos), mas apenas 33 milhões de empregos formais privados. Acrescentando os 11 milhões de empregos públicos, são 44 milhões apenas devidamente empregados. Temos 38 milhões de trabalhadoresno setor informal, 14 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados, que desistiram de procurar, 58 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho ou mal inseridas. Não se trata só do drama do desemprego, mas também da irracionalidade que constitui a subutilização do principal fator de produção, mesmo antes da pandemia. Trata-se de um desafio estrutural, e esperar que “os mercados resolvam” constitui uma infantilidade do século passado.

Semelhante desperdício de potencial econômico representam os 160 milhões de hectares de terra parada ou subutilizada, equivalentes a 5 vezes o território da Itália. Dos 353 milhões de hectares de estabelecimentos agrícolas, nos quais 225 milhões constituindo solo agrícola com água, apenas 63 milhões de hectares são devidamente utilizados, somando lavoura temporária e permanente. Mão de obra parada e terra parada mostram a dimensão do desperdício: inúmeras cidades no mundo, por exemplo, formam cinturões horti-fruti-granjeiros que permitem alimentar melhor as populações, geram emprego, dinamizam pequena e média empresa e asseguram renda que cobre os investimentos. Não à toa hoje a Índia adota e os Estados Unidos discutem políticas públicas de emprego.

Subutilização igualmente grave é constituída pelo desperdício de recursos financeiros, que em vez de serem investidos em atividades produtivas que geram produto, emprego, 2 renda para as famílias e receitas fiscais para a administração pública, são canalizados para aplicações financeiras improdutivas, por meio do endividamento das famílias, das empresas e do Estado. Juros extorsivos travam a demanda das famílias, principal motor da economia, mas também reduzem a capacidade de as empresas financiarem investimentos e produção e gerarem empregos. Ademais, o pagamento de juros sobre a dívida pública, basicamente para aplicadores financeiros improdutivos, drena por sua vez a capacidade do Estado financiar as políticas públicas necessárias, em particular as infraestruturas e as políticas sociais. A gestão racional de recursos financeiros deve fomentar as atividades, não drenar a capacidade de promovê-los.

Tal grau de subutilização de fatores de produção é o fruto de elites arrogantes, mas incompetentes, que buscam o enriquecimento financeiro de curto prazo, e inclusive travam a capacidade de o Estado articular políticas econômicas coerentes. O problema central não está em onde encontrar os recursos necessários, mas sobretudo para onde são canalizados. As privatizações da Vale e da Petrobrás ilustram bem o desvio de recursos. A exportação de minério e de petróleo, riquezas naturais do país, deve servir para financiar avanços tecnológicos, políticas sociais como educação, saúde e segurança, e infraestruturas, iniciativas que dinamizam a produtividade sistêmica do país, em todos os setores. Hoje, com a privatização, servem para alimentar com dividendos os diversos traders de commodities nacionais e internacionais, ganhos financeiros em vez de investimentos produtivos.

Drenos financeiros por meio de juros abusivos, de dividendos que extraem mais do que aportam, de especulação imobiliária e semelhantes, geram fortunas de rentistas mas paralisam a economia. O papel das finanças consiste na alocação racional de recursos, assegurando o pleno emprego dos fatores de produção subutilizados. O dinheiro hoje constitui dominantemente apenas sinais magnéticos, e o investimento que retorna, ao mobilizar potenciais parados, pode ser reinvestido, constituindo o círculo virtuoso de investimento, produção e consumo. Com a pandemia, o dreno tomou dimensões grotescas: entre 18 de março e 12 de julho de 2020, em plena pandemia e com a economia em queda, estudo fa Forbes mostra que as fortunas pessoais de 42 bilionários aumentaram em 180 bilhões de reais, equivalentes a seis anos de Bolsa Família, em menos de 4 meses. E são rendimentos isentos de impostos (lei de 1995 sobre triobutação de lucros e dividendos).

A dinamização do sistema implica não só a disponibilidade de recursos, mas a racionalidade da gestão. Neste país de 5.570 municípios com realidades diferenciadas, e 87% de população urbana, é indispensável assegurar um fluxo maior de recursos para o desenvolvimento local. É em cada cidade que se sabe quais setores têm maiores possibilidades de serem dinamizados, quais bairros enfrentam situações mais precárias, quais são os recursos subutilizados. A Constituição de 1988 descentralizou encargos, mas não os recursos correspondentes. Uma atualização do pacto federativo neste sentido é indispensável, lembrando que em países tão diferentes como a China, a Alemanha ou a Suécia os recursos públicos são descentralizados, dinamizando as economias pela base.

Em 2020 mais de um trilhão de reais de dinheiro público foram repassados para enfrentar a pandemia, mas além dos seiscentos reais por quatro meses, montante total de menos de 200 bilhões de reais, a quase totalidade foi repassada para bancos, onde segundo o 3 Ministro da Economia o dinheiro ficou “empoçado”. Estamos falando de mais de 10% do PIB. Em vez de ser distribuído para instituições financeiras, os recursos públicos precisam ser repassados diretamente para as administrações municipais, com condicionalidade de cada município constitur um comitê de crise com participação de representantes dos principais setores de atividade, e com uma plataforma aberta e transparente de prestação de contas.

A CEF é um ótimo canal de repasse de recursos para as famílias, mas recursos de fomento têm de chegar aos órgãos públicos municipais. A experiência dos Estados Unidos em 2008 é importante: em vez de repassar recursos para os devedores das hipotecas, dinheiro que voltaria para os bancos, mas salvaria as casas, o dinheiro foi para os bancos, que se apropriaram tanto do dinheiro público como das casas, ao executar as hipotecas, gerando uma catástrofe humana.

O repasse de quase um trilhão de reais aos bancos, no Brasil, esperando que dinamizem a economia, repete o erro. Não só repassaram como ordem de grandeza apenas 16% do que receberam, mas cobram juros extorsivos. A pesquisa mensal de juros efetivamente praticados no mercado, da ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis), mostra ordens de grandeza: em janeiro de 2021, 72,73% nos crediários, 257,10% no cartão de crédito, 127,76% no cheque especial, 45,49% no empréstimo pessoal para pessoa física. Para pessoa jurídica a média é de 41,25%. Na Europa os juros para pessoa física são da ordem de 5% ao ano, 3% para pessoa jurídica, 1% no crédito imobiliário. O balanço atual no Brasil é simples: os intermediários financeiros drenam os recursos mais rápido do que o governo os fornece.

A Suíça adotou, nesta crise, um enquadramento legal dos repasses do dinheiro público para ajudar a economia: o dinheiro é repassado pelos bancos, mas com obrigação de repasse e juros limitados a entre zero e 0,5% ao ano. Estamos vivendo uma crise dramática, e os fluxos de financiamentos precisam ser adequados a esta condição, em particular quando se trata de recursos públicos. Cobrar juros elevados quando as famílias e as empresas estão frequentemente em situação desesperada constitui uma agiotagem indamissível, e aprofunda a recessão.

É fundamental o fato de que os recursos que chegam efetivamente na base da sociedade, seja sob forma de ajuda emergencial, de renda básica, ou de outro mecanismo de transferência geram um efeito multiplicador. Laura Carvalho, Rodrigo Toneto e Theo Ribas, economistas e pesquisadores da USP, trazem visão simples, mas muito importante: tributar os mais ricos e transferir os recursos para os mais pobres gera efeitos multiplicadores na economia. O 1% mais rico no Brasil aufere 28% da renda do país, mas transforma apenas 24% em consumo. Já os 30% mais pobres consomem 90%, e com isso estimulam a economia. O resultado é que cada 100 reais cobrados dos mais ricos e transferidos para os mais pobres gera 106,7 reais na hipótese mais modesta. Cálculo que ajuda a entender porque a austeridade paralisa a economia. O IPEA já apresentou resultados semelhantes. (https://dowbor.org/2021/03/redistribuicao-de-renda-erecuperacao-da-economia.html)

As transferências de recursos em 2021 são por enquanto limitadíssima. Os valores de 150 reais para pessoa só, 250 para uma família, e 375 reais para mulher chefe de família, durante quatro meses, e para 45 milhões de pessoas – uma redução de 23 milhões de 4 pessoas relativamente à transferência de 600 reais de 2020 – representa um montante da ordem de 45 bilhões de reais, um fluxo da ordem de 11 bilhões de reais por mês. Só no mês de fevereiro 2021 foram pagos 29 bilhões de juros sobre a dívida pública, quase três vezes mais. (https://www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticasfiscais)

O essencial é que a economia brasileira está numa crise estrutural, com subutilização de fatores de produção, desindustrialização, desemprego e caos financeiro, à qual se sobrepõe a crise da pandemia. As famílias não têm como consumir, as empresas não têm como produzir. As pequenas e médias empresas, que dependem essencialmente do mercado interno e frequentemente do mercado local, não precisam de “confiança” e outras narrativas: precisam de uma população com capacidade de compra, para ter para quem vender, e de crédito barato para ter como financiar o investimento e a produção. No Brasil o empresário produtivo não tem uma coisa nem outra. As empresas estão trabalhando com mais de 25% de capacidade ociosa, quando não fecham. O dinheiro que vai para a base da sociedade retorna, pois dinamiza a economia.

Neste sentido, o problema não está em “de onde tirar” recursos, pois tanto podem ser do orçamento, do endividamento, da conversão das reservas cambiais, de emissão monetária ou de uso das reservas do BNDES e outros bancos públicos, e sim do seu direcionamento adequado: que cheguem às famílias e às pequenas e médias empresas, pois o dinheiro na base gera efeitos multiplicadores, conquanto não seja com juros que mais extraem do que aportam. Fernando Haddad, no seminário sobre propostas econômicas da Fundação Abramo (Março 2021) afirma com razão de que “não existe desenvolvimento sem crédito barato”, e de que “o orçamento foi capturado pelas elites”. O crédito cujo custo é mais elevado do que o impacto produtivo gerado trava a economia.

O país tem os recursos, tem capacidade administrativa, e pode perfeitamente montar uma estrutura emergencial de alocação de recursos descentralizada, transparente e participativa. O problema não está em onde encontrar os recursos, mas em direcioná-los adequadamente, e administrá-la com transparência.