Parece inegável que a reforma trabalhista e a da previdência, aprovadas pelo Parlamento, tinham sido aprovadas antes pela sociedade, ou parte substancial dela, abrangendo trabalhadores diretamente atingidos, em especial entre os já sobrantes, os informais e os precários. Mas o estudo da legitimação alcançada por estas reformas deve considerar que elas se inserem num movimento reformista amplo, cujo objetivo final corresponde à imposição de uma nova ordem econômica – a ordem econômica liberal, tal como idealizada na instituição do mercado; com autonomia plena diante da sociedade. Para legitimar a ampla transformação projetada é construído o discurso da ordem, de uma nova ordem em lugar da existente, anunciada como natural e necessária “para o proveito do mundo”, ainda que se trate apenas de uma ordem determinada, imposta para o mercado, em benefício dos seus agentes, vale dizer, da comunidade de pessoas que o integram.[1]
A nova ordem econômica é concebida partindo da utopia de um mercado inteiramente autorregulável, sendo seu objetivo central explícito a recondução do custo final do trabalho ao preço resultante do livre jogo da oferta e da procura, tratado como pura mercadoria, separada do homem que o conduz e disponibiliza. Com este objetivo principal, a construção da nova ordem visa à eliminação dos valores adicionados a este preço com o exercício da autonomia coletiva dos trabalhadores e os direitos sociais, historicamente conquistados pela sociedade. Inseridos nos ordenamentos nacionais no inicio do século XX, a partir da conquista da participação política e da liberdade sindical, tais direitos foram elevados nos processos constituintes do segundo pós-guerra à condição de direitos fundamentais e guarnecidos com garantias institucionais nos textos das Constituições, dotadas de mecanismos de resistência às emendas dos poderes constituídos.
Como meta adicional, o movimento reformista busca reduzir o custo real de todo o trabalho formal existente hoje, abrangendo dezenas de milhões de trabalhadores, ao seu patamar “natural”, mediante o prolongamento voluntário da recessão, para trazê-los ao nível do trabalho informal e precário. Ao prolongar a recessão no tempo, concretizando gradualmente o efeito redutor visado, são gerados sinais intermitentes de recuperação, para renovar as esperanças, que são amplificadas pelos portais midiáticos do mercado. E o prolongamento voluntário da recessão é usado como prova adicional da necessidade imperativa da nova ordem econômica projetada, invocando o postulado da máxima liberdade econômica. Em busca da nova ordem econômica, o movimento reformista promove mais a expansão do mercado, iniciada com sua instituição há quase 200 anos. Projeta a redução das barreiras externas e a retomada dos serviços públicos, que teriam sido subtraídos indevidamente do mercado, prometendo redução de custos e maior eficiência.
O discurso de fundamentação do movimento reformista conduzido pela extrema direita no espectro político inclui ataques às instituições democráticas e ao processo político, imputando-lhes a responsabilidade pelos tropeços da economia de mercado, com apoio permanente dos portais midiáticos do mercado. Além disto, vai acenando com a possibilidade e a disposição de romper as garantias das instituições democráticas, caso se torne necessário diante do crescimento eventual da resistência popular às reformas.
Esta hipótese – já sugerida por Friedman ensejando a doutrina do choque, antes de aliar-se a Pinochet – revela que a utopia do mercado autorregulado, centrada no combate aos direitos sociais, culpados pelo bloqueio da livre formação do preço do trabalho no mercado, não é antitética com o fascismo, mas guarda uma latente tendência de aproximação com ele.
2. Buscamos desvelar este processo de legitimação examinando a lógica argumentativa do discurso da ordem – de exaltaçãoda ordem econômica liberal idealizada – e os argumentos destinados a internalizar as virtudes das reformas supressivas dos direitos positivados no imaginário social, espaço conformado pela consciência do universo das pessoas concretas, considerando o modo habitual como elas assimilam esquemas intelectuais, assim como noções e imagens normativas mais profundas, que emergem nas suas expectativas, manifestadas ao refletir sobre sua existência social. [2] Uma ordem que teria existido, segundo seus acólitos, no estado liberal novecentista até ser superada com o advento dos direitos e do estado social, cerca de um século depois da instituição do Mercado autorregulador, no inicio da primeira revolução industrial.
O discurso de fundamentação das reformas parte da ideia de uma crise fiscal prolongada do estado, que se aprofunda com o crescimento excessivo de gastos sociais e dos bloqueios da retomada da atividade empresarial, necessária à recuperação da arrecadação tributária. O estado estaria comprimido, de um lado, pelos crescentes gastos sociais e, por outro, por teto arbitrário, o da impossibilidade econômica de acréscimo nas receitas tributárias. Teto que foi construído pela ação ideológica do partido orgânico do mercado; como demonstrou o estudo recente de PIKETTY e seus discípulos, recentemente divulgado, a contribuição tributária dos ricos, empresas e empresários no Brasil é diminuta comparativamente. Mas foi consolidada no imaginário coletivo a ideia do efeito destrutivo já produzido pelas imposições tributárias excessivas sobre a economia.
Prossegue ainda o discurso de que a economia em crise estaria sofrendo o alongamento da recessão e o peso crescente dos direitos sociais sobre os custos de produção, situados em patamar superior às forças dos agentes econômicos nacionais. Operando em um mercado globalizado, determinante de enorme aumento da competitividade, as empresas, especialmente as médias e pequenas que concentram mais trabalhadores, já estariam largamente ameaçadas de insolvência.
Construído com extensa manipulação de dados, este discurso de fundamentação assume requintes de dramaticidade, para imputar exclusivamente aos direitos sociais a causalidade de enormes danos impostos ao Estado e à economia, consideradas ambas como as instituições mais valiosas da sociedade; o primeiro tendo a missão da segurança e da garantia da liberdade individual e a segunda com a missão mais relevante de gerar empregos e promover a prosperidade geral. Desta forma, com a amplificação das lesões enormes anunciadas são incriminados os seus beneficiários, que conquistaram esses direitos e resistem ao seu esvaziamento.
A narrativa que qualifica a posição e a ação política dos trabalhadores como radicalmente antissocial completa o quadro composto com a qualificação do Estado e da economia como os bens mais preciosos da sociedade e o dimensionamento dos efeitos danosos dos direitos sociais, ambos necessitados de um grande movimento transformador.
Com a dramatização destes efeitos danosos, qualificando-os como uma ameaça de ruína do Estado e da falência da economia, os mandatários do partido orgânico do mercado chegam ao ponto de admitir a necessidade de rompimento da institucionalidade para vencer eventuais resistências oferecidas às reformas no Parlamento, refletindo a resistência da sociedade. Isto mostra que a responsabilização dos destinatários dos direitos sociais combatidos, possíveis animadores dessa resistência, ultrapassou o ponto em que a moralidade política deveria ter promovido a sua criminalização, podendo a sua tardança exigir mais adiante o uso da força, com a ruptura das instituições democráticas.
3. O discurso de fundamentação das reformas realizadas e do movimento liberal reformista constrói uma equação lógica perfeitamente análoga – e seus termos correspondem precisamente – ao equacionamento adotado pelo Direito e a Ação Penal, para operar a criminalização de condutas pré-definidas como antissociais, classificadas em patamar mais elevado. O discurso legitimador das reformas, além de desenhar os atores sociais com seus scriptssingulares, destaca os bens jurídicos carentes de tutela, e estabelece arbitrariamente relações de causa e efeito, colocando em cena até armas de destruição em massa. Elabora assim, não uma narrativa do processo político real, mas um simulacro de ação penal, para promover um julgamento político continuado dos direitos sociais na esfera pública e dos seus titulares – os trabalhadores formalizados.
A valoração do delito no direito penal, para eleição e cálculo da sanção, ora atribui maior relevância ao elemento subjetivo – a culpabilidade –, ora à extensão e gravidade do dano causado, ou, ainda, à hierarquia dos bens jurídicos tutelados. Na definição dos crimes ambientais, por exemplo, parece que tem peso maior a relevância do bem jurídico tutelado – o meio ambiente – e o dimensionamento das lesões, produzidas potencialmente para toda a sociedade, do que o elemento subjetivo da culpabilidade, que pode ser diminuta, gerada às vezes pelo simples desconhecimento.
O mesmo parece ter ocorrido no enquadramento da conduta antissocial imputada aos trabalhadores, mas neste simulacro de ação penal, eles são identificados como destruidores inconscientes dos empregos que o mercado está deixando de gerar, empregos que são o único meio de sobrevivência de milhões de pessoas. Com a geração de tal dano para a sociedade, equiparável a um genocídio lento e gradual, estaria justificada fartamente a expropriação de seus direitos.
O caráter antissocial da conduta dos trabalhadores com emprego formal é exacerbado com a retórica de que os seus direitos são armas de destruição em massa de postos de trabalho. Elas operam no plano simbólico para indexar os trabalhadores regulares como inimigos da sociedade. As imputações simbólicas têm uma penetração profunda no imaginário social, que tem sensibilidade para os símbolos e receptividade maior para as mensagens simbólicas.
A narrativa articulada funciona como um discurso da ordem para legitimar, não a ordem vigente, mas a nova ordem econômica idealizada pelo partido orgânico do mercado, enquanto as virtudes atribuídas às reformas para bloquear os efeitos lesivos dos direitos sociais, internalizadas no imaginário social, concorrem para a legitimação do projeto global.
Estaria legitimada desta forma a suspensão da incidência de direitos fundamentais sociais, cuja efetividade foi designada como primeiro dos objetivos do Estado democrático instituído, no preâmbulo da Constituição, justificado o afastamento da aplicação dos seus princípios estruturantes, entre eles o da solidariedade social, gerador da obrigação fundamental para todos os cidadãos de suportar as imposições tributárias necessárias à efetivação dos direitos sociais e justificado também o afastamento da incidência das garantias institucionais positivadas em sua parte orgânica em favor dos trabalhadores.
Configurada a sua condição de inimigos, a eles é imposto um ordenamento especial, destinado a remanescer à margem das garantias fundamentais, tal como acontece com os cidadãos enquadrados no direito penal do inimigo. Surge, assim, um direito social do inimigo.
4. Polanyi, visitando os teóricos do movimento fascista em busca de sua essência, encontrou o combate ao individualismo, que teria surgido por obra do cristianismo, negando a visão organicista da sociedade, prevalecente ao longo do feudalismo. Ele deu ensejo ao surgimento dos direitos individuais, à conquista dos direitos de participação política das maiorias e dos direitos sociais, levando à crise terminal do estado liberal e ao surgimento do estado social, no início do século XX. Daí o ataque preferencial do fascismo alemão ao cristianismo, ao movimento obreiro e aos partidos socialistas e social democratas.
Com base nessa busca, Polanyi sustenta a tese: “O ataque do fascismo alemão dirigido simultaneamente contra as organizações do movimento obreiro e contra as igrejas, não é uma simples coincidência. Expressa bem esta Essência filosófica oculta do fascismo que faz um inimigo comum do cristianismo e do movimento obreiro. Por toda parte da Europa central os partidos socialistas e os sindicatos sofrem uma perseguição dos fascistas. Esta é a sorte reservada aos pacifistas cristãos e aos socialistas religiosos”.
O crescimento do fascismo teria surgido então como uma reação extremada e violenta ao controle social e aos limites impostos ao domínio do mercado, viabilizados pelo avanço das instituições democráticas. Assim sendo, a aproximação verificada no Brasil atual – do liberalismo econômico com a extrema direita – não seria uma aliança entre movimentos estranhos ou paralelos, mas sim a adesão do partido orgânico do mercado à formação política partidária capaz de levar ao extremo da violência a defesa dos mesmos valores.[3]
Temos atribuído a retórica dos agentes governamentais na fundamentação das reformas em curso à ideologia de extrema direita (protofascista) que professam, constatando a sua similitude com o discurso de fundamentação do fascismo que pode levar a pensar que agem espontaneamente, como ultra direitistas que são. Mas parece razoável admitir que a escalada do seu discurso obedeça a uma programação pensada nos seus centros de inteligência, em face da perfeita sincronia revelada nas manifestações surgidas de todos os lados no espaço público, onde tem protagonismo destacado os portais midiáticos do mercado e os seus agentes diretamente interessados, através das entidades empresariais, bem como os catedráticos de economia, diariamente chamados para referendar o diagnóstico da crise fiscal e do bloqueio da economia, em nome da ciência.
Todos eles compõem o partido orgânico do mercado, que abriga ainda os partidos institucionais que vão do centro para a direita no espectro político, como frações suas. Talvez isto possa explicar melhor a legitimação alcançada para a espetacular ofensiva sobre os direitos conformadores do estado social e as liberdades políticas, que estão na base da democracia representativa moderna, valendo-se da lógica amigo/inimigo, formulada por Carl Schmitt.
Diante deste avanço do partido orgânico do mercado, rumando para formas extremadas de ação, cabe ao movimento orgânico emancipatório da sociedade, em busca de uma resistência eficaz, avançar na tarefa de aglutinar os movimentos esparsos que devem atuar em sincronia e com estratégias unificadas, formando uma ampla frente político-social.
Notas
[1] MARÍ, Enrique, in “Papeles de filosofia”, Editora Biblos. Buenos Aires, 1993. Pág. 219.
[2] TAYLOR, Charles. “Imaginários Sociais Modernos”. Edições Texto &Grafia, Lisboa- 2004, pág. 31.
[3] POLANYI, Karl. “La esencia del fascismo”, in “Los límites del mercado”. Ed Capitán Swing Libros, Madrid, p.65 segs.