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Análise: Democracia e participação social na prevenção e combate à tortura

Vitória Maria Corrêa Murta, Nana Oliveira e Isabela Corby

Advogadas*

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Em 2021, a Assessoria Popular Maria Felipa (APMF) foi uma das entidades eleitas para compor o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Em junho de 2022, através do edital “Mobilização em Defesa dos Espaços Cívicos e da Democracia” do Fundo Brasil de Direitos Humanos, iniciou a execução do projeto Comitê Popular Antonieta de Barros. Realizamos este projeto por meio da lei de acesso à informação, uma fotografia dos comitês de prevenção à tortura dos Estados brasileiros e o presente artigo tem como objetivo central apresentar os dados e reflexões acerca destes para sociedade civil.

Nesta semana a APMF completa sete anos de existência e nasceu com três missões:(i) efetivar o acesso à justiça integral para mulheres, mulheres negras e periféricas como mecanismo da consolidação da Democracia brasileira; (ii) pensar, refletir e praticar o Direito também como um caminho da luta política contra a misoginia, o machismo, o racismo e todos preconceitos que estruturam nossa sociedade por meio do restabelecimento da liberdade das mulheres e; (iii) ser um espaço de articulação para promoção de trabalho e renda para mulheres e  prioritariamente mulheres negras, advogadas, psicólogas, assistentes sociais, comunicólogas e articuladoras sociais – e todas as profissões que contribuem para o acesso à justiça – para que possam exercer a advocacia popular .

Atualmente a APMF desenvolve os projetos: Solta ElasEsperança Garcia e Plataforma Baculejo e desenvolveu o PagaNoix e o Solta Minha Mãe, além de ter contribuído por meio de parcerias com outras entidades como a Associação de Familiares de Presos de Rondônia- AFAPARO. E temos em nosso corpo de profissionais – 80% são mulheres e 60% mulheres negras – a estruturação de três equipes: jurídica (advogadas, estagiárias e assessoria de incidência internacional), biopsicossocial (psicólogas, articuladoras sociais e médico psiquiatra) e comunicação (profissionais de social mídia e relações públicas).

O que é o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura?

O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) foi criado em 2013 pela Lei nº 12.847[1], nos moldes do previsto na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes[2] e no Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado em 18 de dezembro de 2002[3]. A mesma lei também cria o Comitê e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

De tal modo que prevenir e responsabilizar é a missão assumida pelo Estado brasileiro em relação a qualquer espaço de privação ou restrição de liberdade.

No caso do Comitê Nacional, os membros são eleitos por organizações da sociedade civil que precisam ser habilitadas, conforme edital para mandatos de dois anos, sendo a participação no órgão considerado serviço público relevante e não remunerado. Na eleição para compor a sociedade civil do Comitê, os votos são direcionados para as entidades da sociedade civil, e não para pessoas físicas em específico. Os comitês não têm como atribuição a fiscalização direta dos espaços de privação de liberdade, entretanto cumprem importante papel em aliança com mecanismos, estes sim com membros habilitados para a fiscalização direta. Entre outras funções, os comitês são responsáveis por colaborar com sinalizações para a atuação dos peritos que compõem os mecanismos e no monitoramento e eficácia das recomendações elaboradas nas missões de fiscalização, bem como atua no processo de seleção e controle funcional dos peritos dos mecanismos. O Sistema Nacional tem como intuito que seus órgãos trabalhem em cooperação.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura é composto por onze peritos. Profissionais que são remunerados e selecionados pelo Comitê Nacional para exercerem mandatos fixos de 3 anos, sendo permitida até uma recondução. A destituição de tal profissional do cargo deve necessariamente passar pelo aval do Comitê, e só é permitida em situações excepcionais. O funcionamento do mecanismo foi elaborado de modo a proporcionar aos peritos a liberdade funcional adequada e necessária, principalmente no que diz respeito à realização de denúncias contra o próprio Estado, as quais perpetuam de diversas formas de tortura nos espaços de privação de liberdade.

Além do Comitê e Mecanismo Nacional, também compõem o Sistema de Prevenção e Combate à Tortura, os Mecanismos e Comitês estaduais de prevenção e combate à tortura a partir da formalização da adesão ao SNPCT, promovendo assim alinhamento em ações entre mecanismos nacionais e estaduais. Porém, a realidade é que apesar da previsão desses órgãos estaduais na Lei nº 12.847, o processo de criação desses órgãos ainda está em curso, e mesmo em estados onde já foram criados, há inadequações que impedem que esses órgãos funcionem em consonância com o que prevê a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, como por exemplo a presença de representantes de forças policiais nos Comitês ou a possibilidade de candidaturas a cargos de peritos dos Mecanismos, que subverte a principiologia da função de fiscalização desses órgãos, uma vez que, em regra, a tortura e praticada por agentes do Estado.

Democracia e participação social nos Comitês

Importante registrar que entre os países que implementaram o Sistema de Prevenção e Combate à Tortura, em grande parte, há apenas o mecanismo, o órgão que faz a fiscalização direta dos espaços de privação de liberdade. A criação dos comitês nacional e estaduais no Brasil foi uma conquista direta dos movimentos sociais de defesa dos Direitos Humanos, que pressionaram para terem espaço de atuação no bojo do Sistema de Prevenção e Combate à Tortura, com a representação do governo, mas que a representação majoritária fosse dos movimentos sociais, cuja atuação esteja relacionada com a prevenção e combate à tortura. Ou seja, nosso SNPTC é fruto da luta política dos movimentos sociais.

Em uma primeira observação sobre os comitês estaduais, existem estados em que temos o decreto ou a lei que institui o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura, mas o funcionamento desses comitês guarda divergências com as normas internacionais e do próprio SNPTC, ou por algum motivo estão paralisados. Ressaltamos que, dos comitês estaduais que contactamos por meio dos emails fornecidos pelas respostas da Lei de Acesso à Informação ao longo do desenvolvimento do projeto Comitê Popular Antonieta de Barros, apenas obtivemos resposta dos Comitês do Amapá, Distrito Federal, Paraíba, Rio Grande do Norte. Já em relação aos comitês do Acre, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe, pelo fato da APMF ter proximidade com as organizações que compõem os referidos órgãos, o diálogo se iniciou por outras vias diferentes do email institucional.

Constatamos ao longo do projeto que as leis e os decretos que instituem os Comitês Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura não são uniformes no que diz respeito à composição dos referidos órgãos, nem tampouco na composição da sociedade civil. Como exemplificação deste dado, verificamos que nas leis ou nos decretos que instituem os Comitês do Amapá, Amazonas, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins, a sociedade civil não é maioria na composição. De tal forma que em um cenário onde a sociedade civil é minoria, ou mesmo paritária com o Poder Público, as pautas que fortalecem a fiscalização e responsabilização do próprio Poder Público provavelmente serão enfraquecidas.

A Lei[4] que institui o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em Goiás (CEPCT/GO) prevê que ele será composto de dez representantes do poder público e sete representantes da sociedade civil. Na resposta do pedido de acesso à informação, o governo do Estado nos informou que está sendo feita a recomposição dos membros e alteração da referida lei, não informando se o Comitê está em funcionamento. Outro exemplo é o Decreto[5] que cria o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Mato Grosso prever que dos vinte membros, metade são representantes do Poder Público e metade da Sociedade Civil.

Outro ponto que desperta a atenção na composição dos Comitês Estaduais é o fato de que em diversos Estados, não existir a previsão de eleição das organizações da sociedade civil para a composição do órgão. De tal forma que as próprias leis ou  decretos já estabelecem quais entidades da sociedade civil comporão o Comitê. Entre os decretos e leis que instituem os comitês e não preveem eleição para a sociedade civil estão o Acre, Amapá, Bahia, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Piauí, Rondônia e Tocantins.

Assim refletimos que a alternância e transparência na participação, através de eleições, dos membros da sociedade civil nos comitês, bem como o fato desses membros no comitê representarem movimentos sociais e entidades são características democráticas que permitem a diversidade e representatividade na participação da sociedade civil.

Entre as leis que instituem os Comitês Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura que não têm tampouco a sociedade civil como maioria, ou eleição da sociedade civil para compor o órgão, destacamos as leis que instituem os comitês de Minas Gerais e da Paraíba. No caso de Minas Gerais, a lei[6] que institui o Comitê – que nunca chegou a ser criado de fato – prevê que ele será composto por cinco integrantes do Conselho de Criminologia e Política Criminal e cinco integrantes designados pelo Governador do Estado, dentre representantes indicados por organizações da sociedade civil com reconhecida atuação na defesa dos direitos humanos e no combate à tortura no Estado que não tenham assento no Conselho de Criminologia e Política Criminal. Enquanto no caso da Paraíba, dos quatorze membros previstos, metade é vinculada a estruturas do Poder Público, já a sociedade civil, quatro são indicados na lei e dois são indicados pelo Secretário da Segurança e Defesa Social. Ou seja, nestes dois estados são exemplos emblemáticos de rompimento do princípio da criação do SNPTC, a própria lei retira qualquer possibilidade de articulação efetiva da sociedade civil para o combate à Tortura.

Dentre os decretos, um exemplo é o decreto do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Acre[7]. Como ponto positivo, destacamos a presença da Associação de Direitos Humanos, Familiares, Amigos e Reeducandos do Estado do Acre; a qual é composta majoritariamente de familiares de presos. Mas apesar de prever a participação da sociedade civil, o decreto elenca todas as organizações que compõem o órgão, não havendo eleição de membros ou rotatividade. Deste modo, a formação do comitê engessada e via decreto, não permite uma participação diversa da sociedade civil, que se organiza também em outros espaços e frentes, como a Frente pelo Desencarceramento do Acre.

No Decreto que institui o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura do Mato Grosso do Sul[8] chama nossa atenção a especificidade dos membros da Sociedade Civil. Apesar de não elencar entidades nominalmente, estabelece, por exemplo, um membro de universidades privadas estabelecidas no estado, sem nenhuma vaga para universidades públicas; e o fato de não haver vaga para entidade representativa de pessoas privadas de liberdade, seus familiares, ou sobreviventes do cárcere.

Nossa reflexão e problematização destas legislações e decretos busca expor a contradição na composição dos órgãos diante das normas internacionais e do SNPTC. Também compreendemos que verificar estas contradições já é um passo para que a sociedade civil organizada possa pressionar os Governos e as instituições do Sistema de Justiça para a alteração legislativa.

Autonomia e efetividade dos Mecanismos

De acordo com dados do Conselho Nacional do Ministério Público, existem hoje no Brasil 1392 (hum mil e trezentos e noventa e dois) estabelecimentos penais. Esse número por si só, sem contabilizar outros tipos de estabelecimentos onde ocorre privação de liberdade – como instituições de longa permanência, comunidades terapêuticas e unidades socioeducativas –  já aponta para a insuficiência do número de peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura na realização de inspeções nas unidades. O fortalecimento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate a Tortura passa também pela criação dos mecanismos estaduais, uma vez que esses órgãos estadualizados permitem maior capilarização tanto na realização das inspeções, como também no processamento e encaminhamento de denúncias de tortura. Destacamos que Estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul sequer possuem decretos ou leis que instituem os mecanismos.

Os peritos que compõem os Mecanismos devem gozar de autonomia funcional, remuneração e segurança funcional, para que consigam realizar o trabalho, que inclui encaminhar para processamento de denúncias contra agentes do Poder Público, quando há indícios de que estes praticaram tortura. Segundo dados mais atualizados, obtidos pela Lei de Acesso à Informação e canais oficiais, os Mecanismos Estaduais que atualmente estão em funcionamento são do Acre, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rondônia.

O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Acre, criado pela Lei Estadual nº 3.986, de 1º de novembro de 2022[9] foi o mais recente a ser instalado no país, o órgão não existia no estado à época em que realizamos o primeiro levantamento do Comitê Popular Antonieta de Barros, em 2022. No entanto, a própria resposta do governo ao nosso pedido de acesso à informação do Estado indicou que em janeiro de 2023 haveria processo seletivo para implantação do Mecanismo do Estado. No histórico de criação do órgão, em novembro de 2021 ocorreu a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta no Estado que firmou compromisso de instalação do mecanismo e em junho de 2023 foi de fato instalado o mecanismo, com posse dos três peritos.

Enquanto que o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, por sua vez, é o Mecanismo mais antigo do país, tendo sido criado pela Lei Estadual n.º 5.778 de 30 de junho de 2010[10] e iniciado suas atividades em 2011. No referido órgão há seis peritos e possuem mandato fixo de quatro anos.

Entre os Estados em que existe a lei que institui o Mecanismo, mas não foi implementado, está entre as funções dos comitês a articulação para criar e efetivar o Mecanismo. Temos por exemplo o Alagoas, onde a Lei[11] que cria o Comitê Estadual, cria também o Mecanismo Estadual, mas o Mecanismo ainda não foi implantado. Roberto Moura – representante da OAB/Alagoas e atual presidente do Comitê de Prevenção e Combate a Tortura de Alagoas – afirmou[12] como uma das principais metas do Comitê é a criação do Mecanismo:

Buscaremos como meta principal para essa gestão do Comitê a implementação do Mecanismo Estadual de Combate à Tortura que já está em trâmite. Temos agenda marcada com a Procuradoria Geral do Estado [PGE] para conversarmos a respeito do posicionamento que demos sobre a propositura da lei, das nomeações e dos cargos de peritos, para que já seja feito o processo seletivo e, estando na qualidade de presidente, serei eu que coordenarei esse processo seletivo de peritos para, enfim, termos a implementação do mecanismo estadual

No que tange a remuneração dos peritos dos Mecanismos, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 607[13], impediu que o ex-Presidente da República Jair Bolsonaro transformasse em atividade não remunerada o trabalho dos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por entender que

manter um adequado quadro de peritos do MNPCT, todos ocupantes de cargos devidamente remunerados, significa equipar adequadamente órgão e, em última análise, a Administração Pública Federal com agentes públicos capazes de levar à cabo a finalidade última de prevenir e combater a tortura no Brasil.

A fundamentação que não permitiu o trabalho dos peritos do Mecanismo Nacional ser não remunerada, entendemos que cabe também aos mecanismos estaduais, no mesmo sentido defendido pelo Comitê Estadual para a Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito Santo em resposta ao nosso ofício pela Lei de acesso à informação,  uma vez que nos Estados tais órgãos devem ser devidamente equipados e que os peritos estaduais realizam funções de prevenção e combate à tortura semelhante  aos peritos do Mecanismo Nacional. A remuneração dos peritos dos Mecanismos Estaduais, entretanto não está prevista em todas as leis que instituem tais órgãos. É o caso por das leis que instituem o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Pará (MEPCT/PA)[14] e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito Santo (MEPET/ES)[15], que instituem que a atuação dos peritos dos referidos órgãos será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerado. Defendemos que a remuneração dos peritos é dos requisitos para a sua independência funcional e para efetividade da sua função de fiscalização e realização de denúncias.

No Distrito Federal, o decreto[16] que institui o Sistema Distrital de Prevenção e Combate à Tortura prevê que Comitê Distrital acumula as funções de Comitê e de Mecanismo – até que haja a implantação de um Mecanismo Distrital -, inclusive de realizar inspeções e apresentar relatório anual de atividades, ao passo que seus membros não são remunerados e os membros da sociedade civil não representam instituições ou entidades, tendo seus mandatos caráter personalíssimo. O fato de os membros da sociedade civil não representarem instituições ou entidades subverte, mais uma vez, todo o objetivo do comitê estadual e do SNPTC, visto que enfraquece a atuação da sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, o acúmulo de funções por parte dos membros do Comitê mistura as competências e enfraquece o Sistema Distrital de Prevenção e Combate à Tortura.

Registramos que na época em que foi publicado o Decreto instituindo o Sistema Distrital de Prevenção e Combate à Tortura, um conjunto de organizações da sociedade civil se manifestou por meio de uma carta pública[17] ao governo distrital, na qual elenca elementos no decreto que estão em descompasso com o Sistema Nacional e com a política federal de prevenção e combate à tortura. Como parte das atividades do projeto Comitê Popular Antonieta de Barros, participamos da 7º Reunião Ordinária do Comitê Distrital de Prevenção e Combate à Tortura (CDPCT), e observamos a dificuldade que o acúmulo de funções de Comitê e Mecanismo impõe e a urgência da criação de um Mecanismo com peritos autônomos, remunerados, com mandato fixo e que tenham suas prerrogativas respeitadas.

A situação no Distrito Federal é extremamente delicada, até mesmo o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura enfrenta obstáculos para realizar as inspeções às unidades prisionais. Carolina Barreto Lemos, perita do Mecanismo Nacional, relatou a dificuldade em reportagem[18] do Brasil de Fato:

Quando chegamos para fazer inspeções, somos submetidos a uma portaria que impede a inspeção, mesmo havendo lei federal que garanta nosso trabalho. A gente tem a prerrogativa legal de fazer inspeções não anunciadas, não faz sentido pedirmos autorização. Temos prerrogativa para tirar fotos, mas somos impedidos. Nos impedem de ter conversas reservadas com os detentos. Como os presos vão denunciar as torturas na frente dos torturadores?”

Rumos da Prevenção e Combate à Tortura no Brasil

O panorama geral que apresentamos neste artigo demonstra que a prevenção e combate à tortura no Brasil é uma política ainda a ser consolidada. Nos últimos quatro anos, o Sistema Nacional sofreu ataques, como o corte da remuneração dos peritos do Mecanismo, que depois foi impedido pelo STF, e a obstrução[19] ocasionada pelo governo federal no Comitê Nacional em meio à crise do COVID19, que teve entre um dos grupos mais afetados, as pessoas em privação de liberdade. No dia 23 de junho, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania realizou uma reunião extraordinária de reativação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, tivemos a oportunidade de integrar esta reunião e temos profundas esperanças de ter sido uma retomada de uma agenda política com olhar e escuta atenta para a pauta, percebemos uma vontade política. Oxalá que a vontade se transforme em ações.

No âmbito estadual, há três frentes principais que carecem de atuação: a) em Estados em que não há lei que institua Comitê e/ou Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, é necessário tanto a elaboração dessas leis, como advocacy nas casas legislativas para que haja a apresentação e aprovação das mesmas. Essas legislações devem ser acompanhadas da instituição dos sistemas estaduais de prevenção e combate à tortura, importante destacar que, no caso da instituição dos mecanismos, é necessário ainda elaborar estratégias políticas orçamentárias que garantam recurso público para a remuneração dos peritos; b) em Estados em que há leis que instituem Comitê e /ou Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, porém tais leis possuem vícios, contradições e inadequações, por exemplo a ausência de eleição da sociedade civil e ausência de maioria de sociedade civil nos comitês, é necessário que haja alteração de tais leis, com o objetivo de que esses órgãos sejam instituídos com toda estrutura e requisitos em compasso com o SNPCT e  serem capazes de cumprir o papel que lhes cabe; e c) Estados em que há lei que institui Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, no entanto tais órgãos não foram implantados ou estão com dificuldade de funcionamento, é necessário ação junto ao Poder Público competente para a implantação e efetividade dos mesmos.

A Assessoria Popular Maria Felipa, por meio do Projeto Comitê Popular Antonieta de Barro financiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, apresenta esta fotografia e reflexões dos Comitês de Prevenção à Tortura dos Estados brasileiros no intuito também de contribuir no debate público desta pauta e as autoras acreditam que só há aperfeiçoamento das políticas públicas a partir do levantamento de dados e diálogo com a sociedade civil organizada.

*Autoras:

Isabela Corby
Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Advogada e Vice-presidente da Assessoria Popular Maria Felipa. Cocoordenadora dos Projetos Solta Elas, Esperança Garcia e Comitê Popular Antonieta de Barros. E-mail: isabelacorbyadv@gmail.com

Nana Oliveira (Fernanda Vieira de Oliveira)
Advogada popular criminalista, fundadora da Assessoria Popular Maria Felipa e Coordenadora Geral de Combate a Tortura e Graves Violação de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos. E-mail: fernandavieira.advogada@gmail.com

Vitória Maria Corrêa Murta
Mestranda em Direito pela UFOP. Articuladora social na Assessoria Popular Maria Felipa e pesquisadora do Programa Polos da Cidadania/ UFMG. E-mail: vitoriamcmurta@gmail.com

[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm#
[7] Decreto nº 11.169, de 04 de janeiro de 2023. Disponível em:  http://www.legis.ac.gov.br/detalhar/5474
[11]Lei nº 7.141, de 23 de dezembro de 2009.  Disponível em: http://www.bristol.ac.uk/media-library/sites/law/migrated/documents/brazilalgoaslaw.pdf
[15] Lei nº10.006, de 26 de abril de 2013. Disponível em: https://www3.al.es.gov.br/Arquivo/Documents/legislacao/html/lei100062013.html