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A segurança pública na constitucionalidade

Fábio Duarte Fernandes

Comandante Geral da Brigada Militar – 2013/2014, Desembargador Militar – Presidente TJMRS

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No Brasil, desde o século XIX, a Segurança Pública tem integrado os textos constitucionais do Império desde a Constituição de 1834 até os dias de hoje, com a Constituição Federal de 1988. O que se observa nas Constituições é que a Segurança Pública sempre foi vista no País como uma atividade de responsabilidade do Exército e, posteriormente, das polícias, as estaduais e a federal. Esses aspectos também estão presentes a partir de 1964 quando ganha força a lógica do combate militarizado e a figura do “inimigo”. A época esta figura do inimigo era representada pelos comunistas ou subversivos.

O entendimento de que a polícia é um órgão voltado para os interesses dos Governantes tem ganhado força nos últimos anos no Brasil, e parece estar cada vez mais presente em nossa sociedade.  Tal mentalidade preconiza a utilização da guerra interna ou a eliminação do inimigo interno como estratégia imposta pelos imperativos da segurança nacional.

A Guerra assumia várias vertentes, que iam desde a mais brutal – o extermínio físico do inimigo – até a mais sutil, de caráter psicológico, cujo plano básico de ação consistia na desmoralização do indivíduo com o objetivo de destacá-lo e afastá-lo dos cidadãos.

No nosso País, as estratégias de atuação das forças de segurança sempre privilegiaram a ocupação de territórios por meio de conquistas violentas impondo suas regras e limitações. Assim, aqueles que se opunham a esses regramentos aceitos como normais são identificados como inimigos do Estado e, por consequência, da sociedade. Percebe-se que as políticas desenvolvidas para a segurança pública sempre foram militaristas e com prioridade na defesa do Estado. Nesse sentido, para que as forças de segurança fossem eficazes seria necessária a ampla ocupação de territórios e a morte dos “inimigos”. Em razão disso, desenvolve-se, tanto junto à sociedade como nas instituições policiais, uma estratégia de ação reativa e militarizada, com foco no tratamento do crime e da violência depois que estes ocorriam, mas quase sem realizar ações preventivas.

Após o período de Ditadura Militar, passamos a construir uma nova constituição brasileira, a qual foi promulgada em 1988. Nessa ocasião, os constituintes não quiseram – ou não puderam enfrentar as pressões militares corporativas do momento e mantiveram algumas instituições com as características do regime fundamentado na ditadura.

Durante o período da República, na Constituição Federal de 1891, sob o regime representativo, o Estado brasileiro inseriu expressões como polícia; segurança interna; segurança individual, segurança da propriedade, inviolabilidade de direitos e estado de sítio. Essas expressões demonstram, já naquela época, a preocupação social com os conflitos internos e externos que estavam presentes no nosso País.

O Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, em seu Art. 5º estabelecia que os governadores dos Estados federados deveriam adotar, com urgência, providências para a manutenção da ordem e da segurança pública, bem como defender e garantir os direitos dos cidadãos nacionais ou estrangeiros. Tal dispositivo legal autorizava os governos locais a organizarem guardas cívicas destinadas à realização do policiamento do território de cada um dos novos Estados.

Em 1891, a atribuição para legislar sobre a polícia era privativa do Congresso Nacional. Com a Constituição de 1934, essa atribuição passa a ser privativa da União juntamente com a organização da defesa externa, de fronteiras e a organização das forças armadas. Mas no Capítulo “Dos Direitos e das Garantias Individuais” se mantém os direitos à liberdade, segurança individual e à propriedade incluindo ainda, o direito e garantia à subsistência.

A Constituição da ditadura de Getúlio Vargas, em 1937, apresenta em seus argumentos iniciais aspectos fundamentais para a compreensão das circunstâncias da época e seus reflexos nos textos constitucionais seguintes no que se refere a Segurança Pública e às polícias. Foi mantida a competência privativa da União para legislar sobre os aspectos referentes à segurança, principalmente a segurança interna e a defesa do Estado. A preocupação era com um inimigo interno e o controle social era realizado pelas Forças Armadas juntamente com as polícias. Percebe-se aqui a inserção do termo “segurança pública”, mas sobre o pretexto garantidor da segurança nacional ou do Estado e não do cidadão.

Na redemocratização, a Constituição Federal de 1946 estabelece, no capítulo “Das Forças Armadas”, as atribuições das polícias militares, as quais são instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal e são consideradas forças auxiliares, reserva do exército.

Durante a ditadura militar, na Constituição Federal de 1967, a competência da organização, definição dos efetivos, instrução, e justiça nas polícias militares era da União. O Ato Complementar nº 40 de 1968 autorizava o funcionamento das polícias militares nos Estados, conforme descrito no artigo 13, parágrafo 4º:

 

As polícias militares, instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares reserva do Exército, não podendo os respectivos integrantes perceber retribuição superior à fixada para o correspondente posto ou graduação do Exército, absorvidas por ocasião dos futuros aumentos, as diferenças a mais, acaso existentes (BRASIL, 1967).

 

Enquanto a Polícia Militar realiza ações ostensivas com a intenção de coibir o crime, propiciando, no seu entendimento, a manutenção da ordem pública, a Polícia Civil desenvolve ações de polícia repressiva e investigativa, na busca de descobrir os autores dos crimes.

Uma primeira dimensão da Segurança Pública prescrita na Constituição Federal de 1988 está no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, no artigo sexto, o qual estabelece os direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança (grifos meus), a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Portanto, com a Constituição Federal de 1988, a Segurança Pública passa a estar inserida no rol dos direitos sociais e é reconhecida como um direito fundamental.

Na atual Constituição Federal, os constituintes inseriram, no artigo 144, uma nova figura na Segurança Pública: a Guarda Municipal. O parágrafo oitavo diz que “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. Desse modo se ratifica a visão tradicional de Segurança Pública desenvolvida no país que concebe a segurança pública como uma ação de defesa e proteção do Estado, em detrimento da defesa do cidadão.

Uma segunda dimensão reside no artigo 144, no título “Da Defesa Do Estado e Das Instituições Democráticas”, onde está também o Capítulo “Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio”, bem como, o capítulo “Das Forças Armadas”.

O Art. 144 sinaliza para uma polícia de segurança do Estado com estratégias militarizadas, cuja demonstração de eficácia deve aplicar a consigna da “lei e ordem”.

A Segurança Pública passa a ser um dever do Estado e direito e responsabilidades de todos. Por tanto, uma segurança pública mais voltada para a manutenção da ordem pública interna. O referido dispositivo constitucional elenca a quem é atribuída essa função criando uma série de agentes “policiais” responsáveis.

A polícia ostensiva é atribuição da polícia militar estadual, cujo caráter militar está garantido no artigo 42 da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece que os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Em contrapartida, como salientamos, o artigo sexto diz que a segurança é um direito social do cidadão e sugere o caminho da ‘Polícia Cidadã’ ou comunitária na qual a premissa básica é de que o trabalho policial eficaz só é possível se articulado com o consentimento da comunidade e o respeito aos direitos e garantias fundamentais.

Ao longo da história das Constituições do Brasil sempre houve uma mensagem ambivalente expedida nos textos constitucionais: uma polícia que respeite os direitos humanos e as garantias fundamentais do cidadão, ou uma polícia para os chamados ‘cidadãos de bem’ e aos ‘criminosos’, uma polícia militarizada, cuja ação visa à ocupação de territórios e a morte dos ‘inimigos’. Ou, ainda, uma polícia voltada somente aos interesses do Estado ainda que por vezes a cidadania corra riscos quanto ao seu emprego na plenitude.

 

A NOVA REPÚBLICA E A CRISE DA SEGURANÇA PÚBLICA

No final da década de oitenta e início da década de noventa, surgiram inúmeros movimentos sociais em busca da confirmação de suas aspirações conquistadas com a Constituição Federal de 1988. Há uma efervescência social no País protagonizada pelos movimentos sociais, sindicatos, pela juventude, pastoral da terra, movimento dos trabalhadores sem-terra e políticos vinculados à esquerda brasileira, que em regra objetivam a materialização das conquistas constitucionais.

Também as polícias do País, particularmente as polícias e corpos de bombeiros militares estaduais, sofrem uma crise de identidade e buscam uma afirmação social que possibilite a construção de uma nova identidade perante os anseios da sociedade brasileira. Essa circunstância é percebida por meio das ações nos dois Governos de Fernando Henrique Cardoso.

O Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995/2002) propôs, em 1996, a criação da figura da ouvidoria de polícia nos Estados para receber as denúncias contra as polícias civis e militares. A proposta foi apresentada no Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996. Em 1998, apoiou a criação do Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia. Também no Governo de Fernando Henrique Cardoso foi criada a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) por meio do Decreto nº 2.315, de 4 de setembro de 1997, a qual compete assessorar o Ministro de Estado da Justiça na definição e implementação da Política Nacional de Segurança Pública, e, em todo o território nacional e acompanhar as atividades dos órgãos responsáveis pela segurança pública.

No primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a prioridade passa a ser a defesa do cidadão. Encarregada da realização do programa de Governo do então candidato Lula, ao Governo Federal, a ONG – Instituto Cidadania realizou estudos e apresentou como principal estratégia para atender a necessidade de segurança pública no Brasil a criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) prevendo reformas profundas nas instituições policiais para torná-las instituições eficientes, respeitosas dos direitos humanos e voltadas para a construção da paz.

A SENASP passou a ser o órgão central dessa implementação com funções de planejamento e execução das ações de Segurança Pública em todo o Brasil; busca implementar a transição de uma cultura da guerra para uma cultura da paz de modo a afirmar que o cidadão é o destinatário dos serviços de segurança pública utilizando a força, quando necessária, mas de forma técnica, racional e ética. Nesse período, a SENASP iniciou um novo estilo de ação organizado de acordo com os processos básicos de um sistema de gestão: diagnóstico, planejamento, execução e monitoramento. Como a reforma das polícias deve incluir uma mudança cultural, o Governo Lula, por meio da SENASP, criou a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) e implementou nacionalmente a matriz curricular de ensino policial, na qual um dos temas presentes é o dos direitos humanos, a fim de mostrar para as forças policiais que a segurança não é apenas “assunto de polícia” (BRASIL, 2006).

No segundo mandato do Presidente Lula, 2007 – 2010 é dada continuidade à política de segurança pública. Com o intuito de aprofundar a implantação do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da Justiça/SENASP cria o Programa Nacional de Segurança com Cidadania – PRONASCI. Esse programa dá condições para o desenvolvimento de ações estruturantes na mudança de paradigmas na área da segurança pública.

O PRONASCI destina-se à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, além de articular ações de segurança pública com políticas sociais por meio da integração entre União, Estados e Municípios. As ações levam em conta as diretrizes do SUSP. Entre os principais eixos do Programa destacam-se a formação e a valorização dos profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Para o desenvolvimento do programa, o Governo Federal busca atuar na área de formação e valorização policial, implantando e ampliando programas de capacitação e especialização acadêmica; de financiamento para a compra de casa própria e programas de assistência à saúde do policial.

O programa é composto por 94 ações, que envolvem os entes federados, União, Estado e Municípios e a própria comunidade. A estratégia de execução do programa se dá por meio de mobilizações comunitárias e policiais e começa com a instalação dos Gabinetes de Gestão Integrada Municipais (GGIM) nos territórios definidos pelo PRONASCI.

O programa se desenvolve em territórios denominados “Territórios de Paz”. Essa estratégia busca estabelecer a paz e a “reconquistas” de territórios dominados pela insegurança, pelo tráfico e por outros agentes não Estatais, como por exemplo, a ação das milícias no Rio de Janeiro.

Os Territórios de Paz são áreas comunitárias onde o poder público dará prioridade para suas ações. Todos os esforços e programas desenvolvidos pelos governos devem dar prioridade aos territórios de Paz. Por exemplo, se o Governo for instalar um posto de saúde a prioridade para instalação deve ser no Território de Paz. Importante salientar isso porque é crucial na estratégia do programa. Todas as ações devem convergir na direção da solução do problema de maneira transversal.

Aliado a isso a estratégia de policiamento comunitário é fundamental para a realização e garantia de manutenção dessa estratégia. Sem a presença dos órgãos policiais não há como garantir a implementação do programa. O desenvolvimento de ações de policia comunitária nos territórios é o que garante a mudança de paradigma, e encoraja a comunidade a acreditar que está ocorrendo uma mudança real onde eles podem contar para a mudança de concepção de segurança.

Entre os 94 projetos, destaca-se o Mulheres da Paz, que oferece uma bolsa para mulheres das comunidades atendidas que queiram se engajar no programa. A ideia é que a liderança exercida por essas mulheres em cada comunidade contribua para afastar o jovem da criminalidade. A estratégia é uma adequação do Programa Saúde da Família (PSF) onde os agentes comunitários de saúde identificam problemas de saúde nos moradores das comunidades. As Mulheres da Paz identificam jovens que se encontram em condições de vulnerabilidade social, em risco infracional ou criminal e encaminham aos programas sociais e educacionais do PRONASCI buscando alternativas para uma possibilidade de vida diferente daquela que lhes está sendo apresentada. As Mulheres da Paz são capacitadas em temas como ética direitos humanos e cidadania e terão a incumbência de aproximar os jovens com os quais o PRONASCI vai trabalhar.

Outro programa importante desenvolvido é o Projeto dos Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO), que visa prestar assistência, por meio de programas de formação e inclusão social, a jovens adolescentes expostos à violência doméstica ou urbana ou que vivam nas ruas. O trabalho tem como foco a formação da cidadania desses jovens por meio de atividades culturais, esportivas e educacionais, de forma a que sejam posteriormente disseminadores da cultura de paz em suas comunidades. A constituição de Núcleos de Justiça Comunitária é outra ação realizada nos Territórios de Paz. O Núcleo tem por objetivo democratizar o acesso à justiça. Oferece mecanismos alternativos para a resolução de conflitos, por meio da mediação comunitária, e também da conscientização dos cidadãos sobre seus direitos.

Para que seja possível a realização dessas ações nos territórios de paz os agentes públicos necessitam do apoio das polícias. Os policiais são capacitados para atuação nos postos localizados nas regiões conflagradas, apoiando os demais projetos no território.

Esse modelo passa a ser desenvolvido no início do século XXI. Um novo modelo de polícia a ser buscado e aperfeiçoado, denominado de: “polícia cidadã ou polícia comunitária ou também denominada polícia de aproximação”. O novo método para controlar o crime e manter a ordem já se mostrara eficiente em países como Canadá, Japão, no Reino Unido e nos Estados Unidos.

No Brasil existem experiências diversas de uma polícia cidadã, em razão da ambivalência constitucional existente. O que se constata é que em determinados contextos sociais encontramos uma ação governamental voltada para a segurança do cidadão, privilegiando ações de polícia cidadã e ou comunitária; em outros contextos, ocorrem ações policiais de segurança do Estado com priorização do combate aos “inimigos” e de tomada de territórios com prevalência da “lei e ordem”. Tal diversidade pode ser observada em programas de governos e de políticas públicas desenvolvidas no País.

As questões vinculadas à Segurança Pública sempre estiveram no centro da vida social e política da sociedade. A forma encontrada na sociedade moderna para atender as necessidades de segurança das pessoas foi o policiamento. Esse sistema é uma tentativa de manter a segurança por meio de vigilância e ameaça de sanção, visando assegurar a ordem social. O policiamento para ser realizado necessita de uma série de técnicas e de profissionais preparados para lidar com os conflitos e consensos que estão sempre presentes nas relações interpessoais. Esses profissionais são, via-de-regra, os policiais.

O policiamento é considerado um dos processos de controle social que ocorre onde há um potencial conflito, desvio ou desordem. O método mais comum adotado na realização do policiamento é a vigilância feita pelos policiais por vezes associada a outras tecnologias mais avançadas como câmeras de vídeo, monitoramento, rádios, veículos e dados estatísticos com o objetivo de descobrir ou prevenir as infrações. Os agentes que realizam o policiamento têm a responsabilidade formal da força legitimada para salvaguardar a segurança, manter a paz e a propriedade nos territórios onde são empregados. O ofício de Polícia é definido pelo exercício do poder de coerção legal e legítimo do Estado e pelo exercício de um serviço ao público que contribui à integração social.

Durante o século XX o sistema de Segurança Pública desenvolvido no Brasil foi coordenado e administrado pelas autoridades policiais com forte vínculo de identidade cultural com as Forças Armadas, particularmente com o Exército Brasileiro. Nesse mesmo período, ocorreu a publicação do Decreto-lei 667, de Julho de 1969, o qual estabelecia a reorganização das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, de modo que o Exército exerceria o controle e a coordenação das Polícias Militares, consideradas forças auxiliares e reserva do Exército. Este Decreto–lei criou a Inspetoria-geral das Polícias Militares (IGPM), cuja “missão” era, e continua sendo até hoje, “coordenar e conduzir, no âmbito do exército brasileiro, como órgão central, as ações de coordenação e controle das polícias militares e corpos de bombeiros militares, de acordo com a legislação vigente”. Também foi importante nessa época a publicação do Decreto-lei 1.072, de 30 de dezembro de 1969, que extinguiu as guardas-civis em todo o país, anexando-as às forças militares existentes, chamadas então de “forças públicas”.

A referida legislação sofreu alterações de conteúdo por meio do Decreto-lei nº 2.010 de 1983, o qual definiu a competência das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. O artigo terceiro teve sua redação alterada no que diz respeito as Polícias Militares, instituídas para a manutenção da ordem pública e da segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, no âmbito de suas respectivas jurisdições, tendo como competência:

a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos;

b) atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem;

c) atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças Armadas;

d) atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, subordinando-se à Força Terrestre para emprego em suas atribuições específicas de polícia militar e como participante da Defesa Interna e da Defesa Territorial.

Além dos itens acima, foram incluídos pelo Decreto-lei nº 2.010, os seguintes:

e) a Polícia Militar poderá ser convocada, em seu conjunto, a fim de assegurar à Corporação o nível necessário de adestramento e disciplina ou ainda para garantir o cumprimento das disposições deste Decreto-lei, na forma que dispuser o regulamento específico.

1º – A convocação, de conformidade com a letra e deste artigo, será efetuada sem prejuízo da competência normal da Polícia Militar de manutenção da ordem pública e de apoio às autoridades federais nas missões de Defesa Interna, na forma que dispuser regulamento específico.

2º – No caso de convocação de acordo com o disposto na letra e deste artigo, a Polícia Militar ficará sob a supervisão direta do Estado-Maior do Exército, por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares, e seu Comandante será nomeado pelo Governo Federal.

3º – Durante a convocação a que se refere a letra e deste artigo, que não poderá exceder o prazo máximo de 1 (um) ano, a remuneração dos integrantes da Polícia Militar e as despesas com a sua administração continuarão a cargo do respectivo Estado-Membro.

O Artigo 4º também sofreu alterações, passando a constar com a seguinte redação:

 

As Polícias Militares, integradas nas atividades de segurança pública dos Estados e Territórios e do Distrito Federal, para fins de emprego nas ações de manutenção da Ordem Pública, ficam sujeitas à vinculação, orientação, planejamento e controle operacional do órgão responsável pela Segurança Pública, sem prejuízo da subordinação administrativa ao respectivo Governador (BRASIL, 1983).

 

Essa alteração possibilitou aos Estados criarem mecanismos de controle e intervenção nas políticas de Segurança Pública desenvolvida pelas polícias, sendo elas militares ou civis. Aos Governadores foi possível, a partir de então, criar secretarias de Segurança Pública, nomeando gestores comprometidos com os programas e propostas de governo nos Estados. Em razão da falta de conhecimento e domínio técnico sobre o tema, muitas vezes eram utilizados como Secretários de Estado na área da Segurança Pública, Generais do Exército, Delegados de Polícia e ou Coronéis da Polícia Militar. Em 1983 a publicação nacional do Decreto 88.777 aprova o regulamento para as polícias militares e corpos de bombeiros militares (R-200) e tem por finalidade estabelecer princípios e normas para a aplicação do Decreto-lei nº 667, de julho de 1969, modificado pelo Decreto-lei nº 1.406, de junho de 1975, e pelo Decreto-lei nº 2.010, de janeiro de 1983.

Um dos principais efeitos dessa regulamentação é o fato de que todas as polícias estaduais, em particular as Polícias Militares, passam a sofrer maior controle das Forças Armadas. Na conjuntura da época esses aspectos propiciavam a ideia de que, agindo desse modo estariam adquirindo mais poder de influência nas decisões das políticas de segurança pública no âmbito de seus respectivos Estados. Assim, devido a efervescência dos conflitos e as disputas de modelo social pretendidos ou impostos na época, os policiais entendiam e acreditavam que deviam buscar o maior proveito do momento junto aos governantes para conquistarem suas pretensões Corporativas da época.

Ainda hoje, após mais de trinta anos da Constituição Federal de 1988, a IGPM realiza fiscalização e visitas de inspeção nos quartéis das polícias militares em todo o Brasil. Desse modo, percebe-se a forte vinculação, por efeito da legislação, das Polícias Militares com o Exército Brasileiro, reproduzindo uma identidade cultural muito forte nas polícias do País, em especial nas polícias militares.

Após a Ditadura, em 1985, o País viveu a experiência da Assembleia Nacional Constituinte onde todos os policiais se mobilizaram na construção de “lobbies” para garantir, no texto constitucional, aquilo que esses profissionais julgavam importante para uma concepção de segurança pública nacional.  Durante esse período foram realizadas, inclusive, arrecadações em dinheiro, junto aos oficiais das polícias militares, a fim de custear as viagens e intervenções no Congresso Nacional pelos representantes dos clubes estaduais dos oficiais de polícia.

O maior objetivo dessas ações era garantir a manutenção das polícias no texto constitucional e a sua identidade com as forças armadas; buscavam ainda retirar da Constituição a proibição de que os policiais militares não poderiam ganhar salários superiores aos das Forças Armadas, conforme estava descrito no artigo 13, inciso VIII, parágrafo 4º da Constituição Federal de 1967.

Nessa época, foi criada a Associação Nacional dos Oficiais Militares Estaduais (AMEBRASIL), entidade que congrega, em nível nacional, todos os oficiais das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. Essa entidade de classe teve sua origem na Associação Nacional de Clubes de Oficiais das Polícias Militares, sendo fundada em 1987, no Rio de Janeiro. A fundação ocorreu em virtude da necessidade dos oficiais atuarem durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Esse modelo cultural para reivindicações buscado pelas polícias militares na época é semelhante ao utilizado pelas Forças Armadas Brasileiras que tem seu poder reivindicatório no Clube Militar, conhecido como a “Casa da República”, criado em junho de 1887 com sede na Cidade do Rio de Janeiro e palco de profundos debates sobre os destinos do Brasil.

Na mesma época, também as Associações de Delegados de Polícia adotaram essa estratégia para garantir seus pleitos corporativos. Por causa das divergências não foi possível integrar os esforços das duas corporações, Polícia Civil e Polícia Militar, passando assim cada uma a agir independentemente na busca da garantia de seus interesses.

Diante deste conjunto histórico existente em nosso país ainda hoje estamos diante de uma forte presença das polícias militares junto aos detentores do Poder. Tanto em nível federal quanto em níveis estaduais e municipais as polícias e guardas municipais realizam atividades vinculadas aos interesses corporativos e dos governos. Em eventos recentes como as chamadas manifestações de junho em 2013, foi possível observar que não há uma doutrina nacional ou mesmo uma concepção sobre a forma de atuação da Polícia em eventos de manifestações democráticas e para a garantia da soberania popular. Durante aquele período foi possível verificar que a atuação das Polícias Militares foi realizada a atender as circunstâncias de cada governante nos respectivos estados. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, a Polícia Militar atuou de modo a preservar a vida das pessoas e possibilitar a realização dos eventos de modo pacífico ainda que prejudicasse o cotidiano e a rotina das cidades. Em outros estados, como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro os confrontos com as Polícias Militares resultaram em um número significativo de pessoas feridas e até mortes. Além de Policiais expostos a risco de vida ou gravemente feridos. Constata-se assim que ainda hoje as Polícias, seja Federal ou nos estados, em particular as Polícias Militares possuem forte vínculo com o governante, Presidente da República ou Governador.

O debate da desmilitarização das polícias sofre os efeitos da ambiguidade constitucional sobre o modelo de polícia ideal para o nosso país. Assim como a constituição Federal apresenta ambiguidades sobre a segurança pública, as lideranças nacionais, acadêmicos e os profissionais da segurança, também discutem qual modelo irá trazer mais tranquilidade para a convivência das pessoas em comunidade. O que se percebe é que hoje os envolvidos com o tema da segurança pública não conseguem atender aos preceitos constitucionais prescritos nos artigos sexto e/ou 144 da nossa Constituição Federal.

Embora as forças políticas e corporativas mantenham o debate sobre a segurança pública e das polícias um pouco adormecido, entendo importante salientar que hoje os Policiais Militares brasileiros necessitam de mecanismos de controle social eficazes e que deem conta de uma resposta efetiva sobre as suas ações.

A Constituição Federal manteve a estrutura militar com base na hierarquia e disciplina para as Polícias e Corpos de Bombeiros Militares no Brasil. Entendo que enquanto isso perdurar o Estado deve fortalecer os mecanismos de controle social sobre as ações dos Policiais e demais integrantes das forças de segurança. Atualmente o regramento constitucional para o exercício deste controle social é feito pelo Poder Judiciário. E, em relação aos militares, pela Justiça Militar.

O policial militar está nas ruas das nossas cidades durante as vinte e quatro horas do dia, portando arma e autorizado, pela sociedade, até a matar. A sua decisão no desenvolvimento de uma ação policial pode repercutir muito na vida das pessoas. Por isso é necessário criar mecanismos de controle sobre seu trabalho. Hoje já dispomos de tecnologia capaz de monitorar e qualificar a ação dos policiais. Além disso, é necessário investimentos significativos na formação e capacitação dos policiais. A educação policial deve envolver segmentos das ciências do direito, da sociologia, psicologia, antropologia, direitos humanos e outras que tratem de questões sociais para a melhor compreensão da sua real importância profissional junto as comunidades. Tecnologias de abordagem, sistemas que propiciem segurança para os profissionais e para as pessoas em geral, utilização de sistemas de inteligência e corregedorias e ouvidorias que sejam capazes de identificar e qualificar o serviço prestado pela polícia.

Estes são alguns dos aspectos que o Brasil necessita colocar à disposição dos policiais para que tenhamos uma polícia mais preparada para os desafios que nossa violenta sociedade enfrenta nos dias de hoje. Assim, é necessário que todos nós compreendamos a importância do policial na garantia dos direitos fundamentais e sociais para além dos relevantes aspectos da segurança pública. O Policial, em especial o Policial militar no Brasil, talvez seja o único profissional que conviva com todos os segmentos e classes sociais existentes no território nacional. Talvez seja o único “braço” estatal presente em uma comunidade, disponível nas 24 horas do dia. Portanto necessita de estar preparado, fiscalizado e ter ao seu alcance os meios necessários para a realização de sua atividade profissional.

Face a este mecanismo de penetração social e presença capilarizada no território aliando a autorização para o pleno exercício do poder de polícia é que o legislador brasileiro, a partir da constituição de 1934, passa a definir a justiça militar como órgão do Poder Judiciário (Art. 63, letra c). A Lei Federal Nº192, de 17 de janeiro de 1936 reorganiza as Polícias Militares, em especial como forças auxiliares do exército. Em seu Artigo 19, parágrafo único determina que cada estado organize sua justiça militar. Tal circunstância nasce da compreensão de que os militares estaduais também, em razão de suas características diferenciadas como militares dos estados necessitam de uma justiça especializada, vinculada ao Poder Judiciário, como forma de garantir a segurança das pessoas e para que se tenha uma análise mais fidedigna dos atos praticados por estes profissionais. A hierarquia e disciplina são a base da vida militar, seja dos profissionais das forças armadas ou dos militares estaduais. Assim, se seguem as demais constituições da federação com a exigência da existência das justiças militares tanto na União quanto nos Estados.

Deste modo, entendo importante salientar que a Constituição Federal de 88 divide a Justiça Militar brasileira em Justiça Militar da União e Justiça Militar Estadual. O Artigo 92 estabelece que são órgãos do Poder Judiciário os Tribunais e Juízes Militares (Art. 92, Inc.VI). Além disso, os Artigos 122 e seguintes estabelecem competências e demais atribuições que definem a Justiça Militar da União e as Justiças Militares nos Estados.

A composição da Justiça Militar da União está estabelecida no Artigo 123, o qual determina a presença de quinze ministros entre militares e civis. A competência da justiça militar é definida no Artigo 124 e no Artigo 125, parágrafos 4º e 5º. Tal separação se deve em razão das diferentes competências da Justiça Militar da União, onde se julga inclusive civis e das Justiças Militares Estaduais onde são processados e julgados os militares estaduais, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil. E mais, cabe ao tribunal decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Cabendo aos juízes do direito militar processar e julgar, singularmente os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares. Aos Conselhos de Justiça, sob a Presidência de juiz de direito, é atribuído processar e julgar os demais crimes militares. Assim, o exercício do controle social sobre os crimes cometidos por militares está sob a responsabilidade do poder judiciário. Conforme preconizam as normas e regramentos constitucionais.

A Justiça Militar estadual está presente em todos os estados da federação e no Distrito Federal. O parágrafo 3º do Artigo 125 estabelece que os Tribunais de Justiça poderão criar a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.

Atualmente existem três Tribunais Militares Estaduais atuando no Brasil: Rio Grande do Sul; Minas Gerais e São Paulo. Sendo que conforme disposto na Constituição está autorizada a criação de Tribunais Militares em mais oito estados (BA;CE;GO;PA;PE;PR;RJ e SC) e no Distrito Federal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora todas estas reflexões e opções sobre a segurança pública e as diversas polícias existentes no Brasil. O que nos chama a atenção é de que apenas nos governos do Presidente Fernando Henrique se criou a secretaria nacional de segurança; nos governos do Presidente Lula, se criou o SUSP, se realizou a primeira e única Conferência Nacional de Segurança Pública da história do país e se constituiu o PRONASCI, talvez a ferramenta mais eficaz para a melhoria da segurança das pessoas. No Governo Temer, em razão da aprovação da Lei de criação do SUSP, foi criado o Ministério da Segurança. O atual Governo extinguiu o ministério da segurança pública e vinculou as ações ao Ministério da Justiça.

Assim, podemos ver que ainda temos um longo caminho pela frente para construir uma política nacional de segurança pública que construa uma polícia cidadã, com uma política pública que atenda a necessidade de segurança da população e priorize investimentos de tecnologia investigativa e de respeito aos direitos e garantias fundamentais das pessoas. De modo a reduzir o alarmante número de quarenta e sete mil mortes violentas intencionais no ano de 2019 no nosso país.

Portanto, permanece na agenda política a consolidação de uma política pública de Estado para a Segurança Pública, tratando o tema de maneira complexa, valorizando a gestão pautada na promoção dos direitos e garantias fundamentais e na valorização profissional, transformando a relação entre direitos humanos e eficiência e eficácia policial, em necessária complementaridade.

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Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
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