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A proteção constitucional do emprego público de servidor concursado no Estado de direito

Tarso Fernando Genro, Rogério Viola Coelho, Jefferson dos Santos Alves e Marco Aurélio Pereira da Silva

Advogados

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O enfrentamento à pandemia do novo coronavírus e o afastamento de dezenas de profissionais em função de contaminação ou por serem grupo de risco tem colocado enorme pressão sobre o sistema público de saúde. Em Porto Alegre a situação pode ser amenizada e o interesse público preservado através de uma solução jurídica. Admitidos mediante concurso público para prestar serviços na área da saúde à Prefeitura, os atuais servidores do IMESF (Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família) podem – e devem – ser mantidos na administração municipal.  Porém, com a decisão do Supremo Tribunal Federal de setembro do ano passado, que declarou a inconstitucionalidade da criação do IMESF, a prefeitura decidiu iniciar um processo de demissão dos servidores.

Ao abrir mão destes trabalhadores do quadro, o poder executivo desconsidera a proteção da relação de trabalho, como disposto na Constituição Federal, e o princípio da boa-fé objetiva que permeia os contratos de trabalho havidos entre o IMESF e os trabalhadores. A solução jurídica e política para o aproveitamento seria a criação de quadro em extinção.

O direito ao trabalho está gravado entre os direitos fundamentais sociais que o artigo 6º reconhece a todas as pessoas, “na forma desta Constituição”. Embora não assegure imediatamente trabalho a todos, ela confere ao valor social do trabalho o estatuto de fundamento da república, ao lado da dignidade da pessoa humana e outros valores (art. 1º). E, mais adiante, destaca a valorização do trabalho humano como fundamento da ordem econômica, precedendo a livre iniciativa (art.170) e, no mesmo artigo, inclui a busca do pleno emprego (inciso VIII) entre os princípios que se impõe na sua regência.

Desta forma, o sistema econômico – de livre iniciativa – não confere uma liberdade absoluta à atividade econômica – ela está gravada por princípios com força normativa e pela imposição de finalidades a alcançar.  O direito ao trabalho, um direito fundamental, é gerador do princípio da busca do pleno emprego, inscrito no artigo 170, para impor aos poderes constituídos o dever de regular e orientar a atividade econômica buscando a efetividade do exercício deste direito. Ainda que não chegue a assegurar um posto de trabalho a todos e a cada um, cabe-lhes adotar políticas de redução do desemprego (para reintegrar os sobrantes) e defender os empregos existentes, opondo resistência às demissões fortuitas, mais fortemente as coletivas.

Este dever dos poderes constituídos está destacado no Preâmbulo da Constituição, onde os representantes do povo brasileiro, interpretando o mandato político que receberam no processo constituinte, proclamam que a sua missão é instituir um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais (…)”  Vale lembrar que a Constituição, resultante do processo constituinte, é a expressão do momento supremo da soberania popular. Nela foi instituída uma república, tendo como primeiro objetivo fundamental “construir uma sociedade livre justa e solidaria”. A normatividade dos títulos da ordem econômica e da ordem social, positivada na sua parte orgânica, avança na concretização deste objetivo, revelando toda a força normogenética do postulado republicano.

Conforme diz Konrad Hesse[1], a força normativa da Constituição depende da existência de uma “vontade de constituição” na sociedade e, especialmente, da determinação dos poderes constituídos. E é inegável que as determinações positivadas pela Assembleia Constituinte têm sido resistidas pelos sucessivos governos, representantes de maiorias eventuais, investidas na titularidade dos poderes constituídos. A sua legitimação vem das manifestações secundárias da soberania popular, nas eleições periódicas. Poderes limitados e condicionados – subordinados mesmo – a manifestação primária da soberania popular.

Na  atualidade em que a instituição da economia de mercado vai perdendo a sua fonte de legitimação secular – a geração de postos de trabalho, amplificada  pelas duas primeiras revoluções industriais – o liberalismo econômico,  paradoxalmente, vem conseguindo avanços significativos em países centrais e periféricos, alargando o espaço de discricionariedade remanescente para os poderes constituídos. Vale dizer, contornando a supremacia da Constituição.

Os seus agentes atuam habitualmente sem questionar os fundamentos da república, os princípios regentes do ordenamento, e os deveres impostos aos poderes constituídos no momento dominante de manifestação da soberania popular. Neste contexto, é necessário recorrer a uma dogmática fundada no programa enunciado pelo Preâmbulo da Constituição, elegendo como postulado hermenêutico fundamental a garantia do exercício dos direitos fundamentais sociais e individuais, entre os quais assume relevância o direito ao trabalho, cujo valor é reiterado no discurso constitucional.

AFONSO DA SILVA[2], representando a melhor doutrina, enfatiza o valor jurídico e a eficácia dos preâmbulos das constituições, sustentando que eles valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais, tendo eficácia interpretativa e íntegrativa.

Ele sustenta que a ideia fundante do texto constitucional está no preâmbulo e o da nossa Constituição dispõe que “ o povo brasileiro, por seus representantes, procurou instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, à liberdade e à segurança, o bem estar, o desenvolvimento a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias:

“Isso e mais os princípios fundamentais do respeito à dignidade da pessoa humana e da cidadania, do art. 1º, e os objetivos fundamentais constantes do art. 3º, especialmente o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, é que oferecem a ideia síntese da concepção básica da Constituição, que é a de orientar a compreensão de todas as suas partes e normas.”

Apoiados neste postulado hermenêutico, a doutrina e os Tribunais deduziram a garantia da manutenção das relações de trabalho concretamente estabelecidas, assegurando a continuidade de exercício do direito ao trabalho. E a sua dissolução foi subordinada à existência de uma razão relevante, assegurando assim uma efetividade significativa deste direito. Direito de que depende, em regra numa economia de mercado, a sobrevivência individual e familiar.

Um direito fundamental correlato ao direito ao trabalho, também positivado na constituição, é o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” (art. 5º, inc. XIII). Ele tem abrangência sobre a universalidade das pessoas que fazem algo para exercê-lo: atendem as qualificações profissionais que a lei estabelece.

Enunciado na forma de uma liberdade, este direito fundamental tem incidência exemplar na investidura nos cargos e empregos públicos, que as pessoas – todas as pessoas – podem buscar submetendo-se a prova de habilitação e, simultaneamente, de classificação, considerando a sua existência em número limitado. A acessibilidade é limitada, mas igual para todos. Vigora aí então o princípio de igual acessibilidade, uma especificação do princípio geral da igualdade de tratamento, devido pelo Estado, princípio que se realiza pelo instituto do concurso ou processo seletivo público.

Os cidadãos que ingressam em cargo ou emprego público, através do concurso, elegem uma profissão e buscam normalmente uma carreira para toda a vida. Cumprem requisitos que lhes custaram habitualmente dedicação especial e, simultaneamente, renunciam alternativas profissionais diversas. É decisiva nesta escolha a confiança na oferta de trabalho e de carreira, assim como no processo seletivo, por serem atos e procedimentos do Poder Público.

Procedem então os candidatos de boa-fé. E a boa-fé objetiva enseja ampla proteção no direito moderno, em particular no nosso ordenamento. A manutenção do exercício do direito é guarnecida também pelo princípio da proteção da confiança, um dos princípios estruturantes do Estado de Direito, vinculado ao postulado da segurança jurídica.

Surge, assim, o dever para o Estado Administração de assegurar a continuidade da relação de trabalho, inclusive na hipótese de extinção de entes públicos instrumentais, que são criados pelos diversos entes federativos. E nas extinções projetadas é alegado geralmente o interesse público, consistente às vezes no objetivo real de racionalização administrativa. Outras vezes reduzido ao imperativo de redução de gastos.  O que não pode ser desconsiderado nestes casos, é o interesse da sociedade na manutenção dos serviços, que é o interesse público primário.

Além de decisões reiteradas dos Tribunais em defesa da manutenção da relação de trabalho nestas hipóteses, os próprios governantes já têm conferido esta garantia aos servidores concursados, criando um quadro em extinção e procedendo a sua lotação em setores com funções afins ao do órgão extinto. Exemplifica um procedimento da Prefeitura de Porto Alegre num caso recente.

A solução foi aplicada quando da extinção da antiga EPATUR (Empresa Porto-Alegrense de Turismo), cuja lei de extinção, Lei Complementar Municipal nº 447, de 10.05.2000, assim dispôs:

 Art. 16 – Os funcionários da Empresa Porto-Alegrense de Turismo (EPATUR) constituirão um quadro em extinção na Administração Centralizada do Município de Porto Alegre.

Parágrafo Único. A remuneração dos servidores do quadro em extinção é exatamente idêntica àquela percebida no momento da publicação desta Lei Complementar, sendo, para o futuro, aplicada a política salarial dos funcionários públicos municipais.

Art. 17 – Fica autorizada a extinção da EPATUR, desde que observado o disposto no artigo anterior sobre a formação de quadro em extinção dos funcionários.

É animadora a constatação de que quando tentada a demissão sumária de todos os servidores os servidores de órgãos e entes instrumentais extintos, tem encontrado com frequência a resistência dos movimentos de autodefesa coletiva, legitimados de forma crescente pelos Tribunais.

O Tribunal Constitucional Alemão proferiu uma decisão paradigmática em 1998, fazendo a ponderação entre o direito do empresário de escolher seu pessoal e o dos trabalhadores já escolhidos a continuar trabalhando. Decidiu pelo direito destes, considerando que “a norma constitucional que garante o direito a empregar-se, ao mesmo tempo garante o direito a continuar no emprego, se não ocorre “uma razão suficiente, não arbitraria

A posição do STF é reiterada em várias decisões, sempre validando os atos singulares que estabeleceram uma relação de trabalho subordinado do particular com o ente público. E assim tem decidido em atenção à boa-fé objetiva do particular que se pautou por atos administrativos praticados com base numa lei posteriormente declarada inconstitucional.

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. REMUNERAÇÃO: GRATIFICAÇÃO CONCEDIDA COM BASE NA LEI 1.762/86, ART. 139, II, DO ESTADO DO AMAZONAS. INCONSTITUCIONALIDADE FRENTE À CF/1967, ART. 102, § 2º. EFEITOS DO ATO: SUA MANUTENÇÃO.

I. – A lei inconstitucional nasce morta. Em certos casos, entretanto, os seus efeitos devem ser mantidos, em obséquio, sobretudo, ao princípio da boa-fé. No caso, os efeitos do ato, concedidos com base no princípio da boa-fé, viram-se convalidados pela CF/88. II. – Negativa de trânsito ao RE do Estado do Amazonas. Agravo não provido.” (Ac. un. da 2ª T. do STF, de 14.06.2005, no RE-AgR 434.222, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 01.07.2005).

Esta orientação é consagrada pela doutrina, como revela excelente artigo do Ministro GILMAR FERREIRA MENDES, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul:

“A NULIDADE DA LEI E OS ATOS SINGULARES PRATICADOS COM BASE NO ATO NORMATIVO DECLARADO INCONSTITUCIONAL

“A ordem jurídica brasileira não dispõe de preceitos semelhantes aos constantes do S 79, da Lei do Bundesver[assungwrícht, que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de  impugnação.

Não se deve supor, todavia, que a declaração de inconstitucionalidade afeta todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. Embora a ordem jurídica brasileira não contenha regra expressa sobre o assunto e se aceite, genericamente, a idéia de que o ato tido em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de ilicitude, concede-se proteção ao ato singular, procedente a diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktep) através das chamadas fórmulas  de preclusão.

Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade.

Vislumbra-se uma exceção a esse entendimento na sentença condenatória penal, uma vez que aqui inexiste prazo para a propositura da revisão (…).”[3]

 É possível ver de outro ângulo os atos singulares dos cidadãos que cumpriram os requisitos e as formalidades para investidura em cargos ou empregos públicos. Eles exerceram o direito ao trabalho e à livre escolha da profissão, consagrados como direitos fundamentais, ambos protegidos pelo princípio da proteção da confiança, considerado pela doutrina um dos princípios estruturantes do Estado de Direito[4], ou como subprincípio do macro princípio do Estado de Direito[5]

Convém lembrar, neste passo, que a primeira virtude postulada pelo direito moderno é a de assegurar previsibilidade a todos os cidadãos, para toda a sua atividade: pública e privada. Só assim a lei poderia se constituir em fonte de liberdade. A liberdade resultaria do conhecimento prévio do balizamento posto pelo ordenamento jurídico para o indivíduo projetar suas atividades no amplo espaço aberto pelo direito. No magistério de NOVAIS[6], como veremos, os princípios estruturantes são a condição da previsibilidade da atuação estatal, enquanto pressuposto de autonomia individual na conformação de planos de vida próprios. 

Este preceito se realiza na hipótese dos servidores concursados, que elegem uma profissão para toda a vida, e dedicam esforços e tempo de vida à preparação exigida, confiando integralmente na validade dos atos normativos e administrativos do Poder Público, que gozam de presunção de legitimidade.

Segundo NOVAIS, qualquer estado de direito, assim definido em sua Constituição, é voltado à garantia dos direitos fundamentais e, para tanto tem de respeitar, em toda a sua atuação, os princípios estruturantes: “Os princípios estruturantes desempenham um papel decisivo, num domínio especialmente qualificado, ou seja, o da garantia específica dos direitos fundamentais contra atuações ou omissões dos diferentes poderes públicos, lesivas do respectivo conteúdo “[7]

NOVAIS esclarece que os princípios estruturantes não são direitos fundamentais, mas correspondem a deveres impostos ao Estado, que constituem garantias para a efetivação dos direitos fundamentais. Estes direitos nascem antes das garantias no ordenamento constitucional, mas elas surgem em seguida porque o Estado, instituído pela assembleia constituinte, tem por missão precípua garantir o exercício efetivo destes direitos, conforme declara o seu Preâmbulo [8]

Existentes em todo Estado de Direito, ainda que não enunciados, os princípios estruturantes, tem um estatuto mais elevado do que os demais princípios. Pela sua natureza “a sua prevalência ou cedência não pode ser remetida para ponderações de caso concreto; ao invés, a sua força vinculativa prevalece, sempre.”[9] Entre eles  avulta o princípio da proteção da confiança que “significa que os poderes públicos não podem frustrar as expectativas legítimas dos particulares, (…)”.

A tutela jurídica das expectativas e da confiança dos particulares é garantida logo que os poderes públicos estabelecem específicas e concretas relações jurídicas com os indivíduos. Enquanto padrão normativo que vincula a atuação dos poderes públicos em Estado de direito, o princípio da proteção da confiança pode ser violado mesmo quando a atuação estatal não é censurável do ponto de vista da boa-fé dos seus agentes. Isto é o que acontece, realmente, quando a lei infraconstitucional vem a ser declarada contrária a Constituição.

Conforme o constitucionalista lusitano,

“… mesmo que a Constituição não consagre referências expressas à segurança jurídica e à proteção da confiança, esses são princípios essenciais da Constituição material do Estado de Direito, enquanto fatores imprescindíveis à uma estruturação da vida social em paz jurídica e, na Perspectiva dos particulares, tais princípios são condição da previsibilidade da atuação estatal enquanto pressuposto de autonomia individual na conformação de planos de vida próprios.

E mais, a luta pela constituição e pelo estado de direito foi também, desde os primórdios das revoluções liberais, uma luta pela segurança jurídica, no sentido de um projeto de organização racional do Estado e da sua atuação que mantivesse a esfera dos particulares, nomeadamente no domínio do direito de propriedade e da atividade econômica,  ao abrigo das arbitrariedades típicas de um exercício dos poderes de autoridade discricionária que caracterizavam o anterior Estado absoluto.

Sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos susceptíveis de repercutirem na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, em última análise, com violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objeto do acontecer estatal.”

 Quando o particular, “reagindo a uma decisão ou estímulos públicos modifica os seus planos de vida, toma decisões marcantes para o seu futuro em função do que lhe está a ser dito ou prometido pelo estado, faz um chamado investimento de confiança”.

 O montante ou a gravidade do prejuízo sofrido com a frustração de expectativas, tem relevância na medida da proteção dá confiança, porquanto, “… se existe casos de um prejuízo insignificante, realmente recuperável, situação bem diferente será a de alguém que já não tem condições de adaptar os seus planos a nova realidade jurídica e a quem, a frustração de expectativas provoca danos potencialmente irreparáveis.[10]

No presente caso, é indiscutível a boa-fé dos atuais servidores do IMESF admitidos mediante concurso público. Logo, a declaração da inconstitucionalidade da lei que autorizou a instituição do IMESF e que pode levar a uma eventual extinção da própria entidade administrativa não conduz, por si só, à extinção dos empregos, que devem ser preservados, em razão da boa-fé que milita em favor de seus ocupantes.

A confirmar-se a extinção do IMESF, o natural é que seja dado aos empregos dos atuais servidores o mesmo tratamento dado invariavelmente aos cargos e empregos que compõem o quadro de pessoal das pessoas administrativas quando da sua extinção que é a instituição de um Quadro em Extinção.

Trata-se de solução jurídica compatível com a Constituição, que, além de preservar o direito dos servidores aos seus empregos, coincide com o interesse público, em sua dimensão primária, de interesse comum da sociedade, na manutenção dos seus profissionais de saúde da família, particularmente diante da emergência de uma pandemia.

Depois de recente decisão do STF, foram feitas pela Administração municipal diversas demissões dos empregados públicos ligados ao instituto, sob o fundamento da inconstitucionalidade declarada.  As demissões verificadas, além de contrariarem os princípios e garantias examinadas, são atos diretamente contrários ao interesse público primário, que corresponde ao interesse da coletividade, quando se considera que os serviços prestados são de proteção à saúde. A população atendida em postos de saúde ou clínicas da família, com a eventual perda de mais de mil trabalhadores da saúde, em pleno avanço da pandemia, é posta em risco pela interrupção repentina do serviço de assistência básica à saúde, que faz parte do mínimo existencial, sendo assim, um direito fundamental.

Nas despedidas de caráter coletivo a vedação da demissão assume um especial caráter tutelar, pois o dano individual da rescisão unilateral e arbitrária tende a tornar-se crise social. Ferrajoli, apresentando a obra de Abramovich e Courtis[11], sustenta que os direitos fundamentais e sociais são judicialmente exigíveis, concluindo que, da consagração do direito ao trabalho decorre, imediatamente, que a despedida injustificada viola esse direito fundamental.

A Organização Internacional do Trabalho estabeleceu as premissas para a obstrução da finalização das relações de emprego ao editar a Convenção 158, positivando no Direito Internacional Público o princípio da continuidade, consagrado há quase um século pelo direito do trabalho. O Brasil ratificou esta Convenção, internalizando aquela garantia convencional em nosso ordenamento, depois a denunciou.

A denúncia, pelo ordenamento da OIT, cabe ao Estado-Membro, que não pode ser reduzido ao Chefe do Executivo. O Presidente da República, à época, unilateralmente, denunciou esta Convenção, publicando o Decreto 2.100 em dezembro de 1996, ensejando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.625 de 1997), fundada na impossibilidade de revogação (por ato unilateral do Chefe do Executivo Federal) de norma com status superior a lei ordinária (supralegal, conforme decisão do STF no RE 466.343/SP).  No STF a votação se arrasta, mas já está formada maioria pela inconstitucionalidade da denúncia pelo ato monocrático.

Por outro lado, mesmo que fosse validada a  denúncia, não estaria decretada a invalidade absoluta da norma jurídica geral, pois um Tribunal, em sede de controle difuso da constitucionalidade, pode “reconhecer esta norma jurídica geral numa outra hipótese igual, de modo que uma norma jurídica geral pode valer aqui – indiretamente – e num outro caso igual não valer“, mesmo que o enunciado geral possa ser verdadeiro numa circunstância e, numa outra igual, ser falso.[12]

A  ineficácia da denúncia da Convenção 158 e sua aplicabilidade, em controle de convencionalidade, está consignado na manifestação da então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge nos autos da ADPF 486[13], intentada pelo governo do Estado do RS requerendo o afastamento das decisões dos Magistrados do Trabalho quanto à obrigatoriedade de negociação coletiva para dispensa dos empregados públicos.

Na mesma manifestação, a PGR assinalou que “não há [que] falar em direito potestativo do empregador público sobre a demissão”, referindo que a “rescisão simultânea e coletiva de centenas de vínculos de emprego, pelo impacto social que dela decorre e pela natureza coletiva dos direitos afetados, constitui matéria própria de negociação coletiva com as entidades sindicais representativas, eis que o valor social do trabalho figura como fundamento do Estado Democrático de Direito”.

E oportuno lembrar que a força de trabalho é, em termos econômicos, “mercadoria”, mas o portador desta força, o trabalhador, não é uma mera mercadoria e assim não pode ser tratado. Este é o roteiro do princípio da continuidade. Esta ultrapassagem do trabalho, do universo objetivo da economia para esfera subjetiva do Direito, promove uma alteração na dogmática constitucional do Estado Social, que está ancorada na nossa Constituição (§ 2º do artigo 5º). Ela incluiu entre os direitos e garantias fundamentais, aqueles que constem de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, quando dispôs (no § 1º), que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Em face destes enunciados, com maior força se impõe a lição de Ferrajoli, defendendo, como efeito imediato da consagração do direito ao trabalho, a vedação das despedidas imotivadas e, com maior razão, nas demissões coletivas, referidas na Convenção 158 da OIT.

Cumpre destacar que o já referido Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais também obriga os Estados-Membros signatários a empregar os esforços necessários para implementação dos atos concretos, deliberados e orientados para a satisfação completa das obrigações assumidas, privilegiando também o princípio da proibição do retrocesso social, claro nos artigos 3º, inciso II, e 7º, caput, da Constituição de 88.  O Brasil praticou os atos que atenderam os ditames do Pacto, positivando como direitos fundamentais o direito ao trabalho, na Constituição, e depois disso ratificando a Convenção 158.

A sua denúncia arbitrária e a resistência do STF em concluir o julgamento da inconstitucionalidade da denúncia da Convenção 158, soam como movimento de retrocesso“, vedado no referido Pacto e na Constituição Federal, unilateralmente.

Pelas razões expostas, concluímos pela inconstitucionalidade das anunciadas demissões de servidores concursados, vinculados ao IMESF, não restando alternativa ao ente estatal municipal que a manutenção dos vínculos de emprego estabelecidos, ainda que em face da lei declarada inconstitucional, mediante a criação de “quadro em extinção” para alocar estes trabalhadores.

 

[1] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.

[2] AFONSO da Silva, José. In: Comentário Contextual a Constituição. Editora Malheiros. São Paulo. 2ª Ed. pág. 16.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. REVISTA da Faculdade de- Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul VOLUME 11- 1996. Porto Alegre: UFRGS. p. l-209.

[4] NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes de Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2019. p. 19-20.

[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.

[6] NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes de Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2019. p.149 e seguintes.

[7] Idem. p. 12

[8] . Idem, p. 15.

[9] Idem. p. 14. Segundo o autor: “Os direitos fundamentais teriam sido intencionalmente furtados a disponibilidade das maiorias conjunturalmente no poder através da sua constitucionalização, mas, na medida em que a sua realização necessita de ser compatibilizada com outros interesses dignos de proteção que exijam a eventual cedência das garantias fundamentais, a maioria política recuperaria, por fato da inevitabilidade dessa decisão, o controle sobre os direitos fundamentais. Daí a conclusão de que “acabam por ser estes princípios(estruturantes) que, verdadeiramente e na prática, asseguram a prevalência dos direitos fundamentais, podendo dizer-se que,  no confronto com interesses de sentido contrário,  são os princípios estruturantes que formam os dentes dos direitos fundamentais, que lhes garantem uma efetividade que vai para além de um mero apelo à  ponderação, à boa vontade dos agentes políticos. “

[10] Idem. p. 166.

[11] ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Dom Quixote: Porto Alegre, 2011. p. 17-23.

[12] KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1986. p. 279.

[13] Supremo Tribunal Federal. ADPF 486. Manifestação PGR, 27/02/2018. Relator Min. Gilmar Mendes. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5282996

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