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A Privatização da CEDAE, as Milícias de Bolsonaro e a Elite de Guedes no Ataque a um Direito Fundamental

Márcio Calvet Neves

Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal, advogado tributarista e mestre em ciência política e políticas públicas

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Introdução

 

No Brasil e no mundo várias pessoas e instituições se questionam a respeito da razão pelo qual uma parcela ainda significativa da elite empresarial nacional, particularmente da elite financeira (a elite empresarial/financeira), ainda apoia o governo Bolsonaro, mesmo diante dos flagrantes abusos cometidos contra direitos fundamentais e o constante ataque ao Estado de Direito.

Rotineiramente, somos confrontados com atitudes de um governo obscurantista, antiecológico, preconceituoso, que prega abertamente a violência por parte de uma população que deseja ver armada. Na esfera internacional, o governo conseguiu causar danos imediatos às relações comerciais e diplomáticas do país, historicamente motivos de orgulho. Se não bastasse, a pandemia ressaltou o absurdo retrocesso e a crueldade vividos pelo Brasil, com a liderança do governo federal boicotando todas as medidas de combate ao vírus e ignorando as centenas de milhares de mortes decorrentes.

Mesmo assim, perdura uma silenciosa aprovação de parte da elite empresarial/financeira, que ainda ajuda a sustentar o governo.  O tipo de apoio se diferencia daquele de outros grupos, mais declarado e enfático. É muito comum que, quando questionados sobre o apoio a Bolsonaro, tais membros da elite se justifiquem afirmando que não apoiam necessariamente o presidente, mas sim o ministro da Economia Paulo Guedes e sua política econômica neoliberal.

No entanto, existe outro tipo de elite, esta sim, que externa um apoio mais centrado na figura do presidente. No caso, a elite do crime organizado das milícias cariocas. Obviamente, milicianos pró-Bolsonaro e empresários pró-Guedes não possuem qualquer elo formal, mas quando se constata que tais grupos foram praticamente os únicos que tiveram resultados positivos num governo em que todos os indicadores são negativos, é inevitável tentar buscar os pontos de sinergia.

O que este artigo sustenta é que há uma silenciosa comunhão de interesses entre os grupos de origem tão dispares e que esta união pode ser ilustrada por eventos como o recente leilão de privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – CEDAE.

Na sexta-feira, dia 30 de abril, após várias batalhas jurídicas e legislativas, foi realizado o leilão de concessão da CEDAE. O resultado foi anunciado com estardalhaço pela grande imprensa e celebrado pelos mercados financeiros, que comemoraram a arrecadação de R$ 22,6 bilhões e o ágio de 114%.  O evento foi acompanhado por Bolsonaro e Guedes, que saíram juntos e triunfantes nas capas dos principais jornais declarando a venda como prova do iminente crescimento do Brasil e da retomada de investimentos nacionais e internacionais.

Para o leilão, a área coberta pela CEDAE foi dividida em quatro blocos. O consórcio Aegea, composto pelo Itaú, o Fundo Soberano de Cingapura e o Grupo Equipav foi o vencedor do Bloco 1, que contemplava os 18 bairros da Zona Sul carioca, área mais rica da cidade. O mesmo consórcio levou o Bloco 4, que continha os bairros do Centro e da Zona Norte, redutos da classe média. Já o Bloco 2, que englobava os emergentes bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá, teve como vencedor o Consórcio Iguá, representado pelo BTG e cujo controle é detido pelos fundos de investimento estrangeiros Canada Pension Plan Investments e Alberta Investment Management Corporation e que tem também uma participação do BNDESPar.

Sem propostas dos quatro concorrentes habilitados ao leilão ficou o Bloco 3. Não coincidentemente, referido bloco abarcava 22 bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde mora a população mais pobre da cidade.  Entre tais bairros estão Campo Grande, Bangu, Santa Cruz e Seropédica e outros núcleos do poder exercido pelas milícias cariocas. Tais grupos paramilitares, como se sabe, têm como uma das principais fontes de receita a exploração econômica de serviços de concessionárias, incluindo o abastecimento de água, objeto da licitação. Ou seja, o alardeado sucesso do leilão, por hora, não chegará à população que mais precisa da melhoria dos serviços públicos e nem mudará situações como a de milicianos que forçam os moradores a comprar água de caminhões-pipa (UFF/UFRJ, p. 24)

O resultado do leilão demonstra como dois grupos completamente distintos e sem qualquer relação entre si são beneficiados pelo irrefreável ataque ao Estado comandado pela dupla Bolsonaro e Guedes. Se, de um lado, os líderes financeiros saíram satisfeitos com mais uma privatização de uma empresa extremamente lucrativa e a conquista do monopólio na prestação de serviços destinados aos mais ricos e à classe média, de outro, as milícias asseguraram a liberdade para continuar dominando a oferta dos mesmos serviços aos mais vulneráveis. Ou seja, o leilão ilustrou perfeitamente o compartilhamento de espaço e a silencioso respeito entre os grupos vencedores. Tanto as milícias, quanto a elite financeira/empresarial que ainda sustenta Bolsonaro confiam no prolongamento da proteção jurídica e econômica conferida por seus padrinhos políticos, conforme analisado a seguir.

 

Bolsonaro e as Milícias

 

São notórias as relações da família Bolsonaro com os milicianos, entre os quais Adriano da Nóbrega e Fabricio Queiroz. Adriano, morto por forças de segurança na Bahia, chegou a ser condecorado com a medalha Tiradentes por recomendação de Flavio Bolsonaro, que também empregou Queiroz e familiares de ambos em seu gabinete na ALERJ, conforme amplamente noticiado no escândalo das chamadas rachadinhas. Bolsonaro jamais faz questão de esconder o vínculo com as milícias, como demonstrou recentemente ao postar foto sua com o cartaz de “CPF Cancelado”, gíria típica dos membros das organizações criminosas para celebrar a morte de um oponente.

As milícias controlam atualmente 57,5% do território da capital do Rio de Janeiro e a vida de mais de duas milhões de pessoas. Seu poder não é restrito à Zona Oeste ignorada no leilão da CEDAE, pois situações como a dos donos de restaurantes, proprietários de bares e síndicos de prédios forçados a pagar por segurança privada ofertada pelas empresas controladas por milicianos são comuns também em bairros nobres da Zona Sul, na Zona Norte e no Centro.  No entanto, é na Zona Oeste, onde a população é mais carente, que o morador sofre mais com o poder miliciano e o ataque aos direitos fundamentais. Diariamente, moradores se defrontam com estações de transporte público depredadas, cabos de energia e internet danificados, tudo para que sejam forçados à contratação dos serviços disponibilizados pela milícia. E, em oferecendo resistência, são expostos à intimidação e à violência.

No governo de Bolsonaro há uma declarada tentativa de expansão da metodologia que sustenta o poder paramilitar miliciano para o restante do país, como corroboram a insistência do presidente em facilitar a compra de armas e dificultar o rastreamento de munições, o projeto de delegar o combate ao desmatamento à polícia militar (criando as chamadas milícias amazônicas) e a tentativa de federalização das polícias militares, berço de boa parte dos milicianos.

 

Guedes e a Elite Empresarial/Financeira

 

Em comum com Bolsonaro, Guedes governa em benefício do grupo com o qual sempre teve estreitos laços. Mesmo em tempos de pandemia conseguiu aprovar tranquilamente projetos como a autonomia do Banco Central e o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF (artigo 28 da Lei nº 13.988/2020), que delegam quase que integralmente a fiscalização tributária e regulatória das instituições financeiras para os próprios bancos.

São as medidas como as descritas acima que fazem com que a elite empresarial/financeira ainda apoie o governo, de forma às vezes nem tão velada, conforme evidenciado por ato realizado em abril em que o governo foi bajulado por líderes da FIESP e de algumas das principais instituições financeiras do país. Guedes sustenta o apoio entregando resultados concretos: ao deixar de seguir medidas implementadas em outros países, em que os mais ricos foram chamados a contribuir para diminuir o caos social causado pela pandemia, ajudou a multiplicar a riqueza dos bilionários brasileiros (aqueles com mais de US$ 1 bilhão), que, segundo a revista Forbes, passou em 2020 de US$ 127,1 bilhões para 219,1 bilhões, mesmo num ano em moeda brasileira sofreu enorme desvalorização.

O direcionamento das políticas econômicas de Guedes para a elite empresarial/financeira é tão flagrante que chega a ser surpreendente como a maioria da sociedade a aceita passivamente. O ministro atua plenamente ciente de que o brasileiro considera a justiça social hierarquicamente inferior ao objetivo de prosperidade financeira. Na verdade, a busca pelo lucro a qualquer custo faz até com que a elite empresarial/financeira ignore a ideologia liberal e capitalista que tanto propagandeia, pois o mesmo diretor de banco que brada contra o comunismo no minuto seguinte celebra o investimento chinês em áreas estratégicas da infraestrutura nacional.

A captura regulatória existente na autonomia do Banco Central, no fim do voto de qualidade do CARF e em outras atitudes predatórias, como a nomeação de pessoas do mercado para posições estratégicas do governo, são vistas como normais pela sociedade, que desconhece que Guedes, da mesma forma que Bolsonaro, submete o domínio público aos interesses privados do meio ao qual sempre pertenceu.

 

Os Pontos de Comunhão entre as Milícias de Bolsonaro e a Elite Empresarial/Financeira de Guedes

 

Tanto as milícias de Bolsonaro quanto os agentes do neoliberalismo radical de Guedes se beneficiam da ordem social injusta estimulada pelo próprio governo, sendo uma perfeita ilustração do ciclo de exploração descrito por Paulo Freire. Instituições financeiras apoiadas por Guedes e as milícias de Bolsonaro não raras vezes são vistas como salvadores pelas mesmas pessoas que as exploram, como comprovam as propagandeadas concessões de crédito e doações durante a pandemia por parte dos bancos e a proteção comunitária ou a oferta de serviços públicos por milicianos.

Assim como em determinadas instituições financeiras a mesma pessoa responsável por liderar a área de planejamento financeiro e tributário para indivíduos e famílias ricas brasileiras também comanda a área social, as associações de moradores lideradas por milícias regulam tanto as questões de propriedade e sucessão na comunidade, quanto prestam serviços assistenciais (UFF/UFRJ, p. 30).

Algumas fontes de receitas das milícias e da elite empresarial/financeira são também assemelhadas, conforme exemplifica não só leilão da CEDAE, mas também a exploração de outras concessões públicas e de receitas imobiliárias, legais e ilegais. Se o banco hipoteca o imóvel de propriedade de um cidadão de classe média, a milícia também concede crédito por meio da agiotagem para a aquisição ou locação de imóveis e possui seu próprio processo de tomada do imóvel, à força, em caso de inadimplemento. A sinergia entre os dois grupos faz até com que o governo possa legislar em benefício de ambos, sem que isso seja visto como um apoio frontal ao crime organizado. Um exemplo é a edição desastrada da Resolução 64/2020 pelo Ministério da Economia, que sob o argumento de atender os princípios da liberdade econômica e desburocratizar os licenciamentos e a obtenção de alvará de construção transferiu para empresas privadas o licenciamento, reduzindo ainda mais o poder municipal sobre as obras, uma das principais razões para a expansão das milícias.

Os dois grupos também patrocinam seus respectivos sistemas de concentração de renda. Instituições financeiras se beneficiam de um regime tributário legal, mas arcaico, que pouco tributa os rendimentos financeiros e depende de tributos incidentes sobre bens e serviços que recaem sobre os mais pobres. A milícia vai além e cria seu próprio regime, fazendo com que o explorado seja compelido a pagar uma “contribuição” incidente sobre sua renda, o que faz com que o pequeno comerciante achacado pela milícia se sujeite a uma carga sobre seus negócios até mesmo superior àquela incorrida pelos grandes empresários da área financeira.

A captura regulatória é estratégia usada pelos dois grupos. Tanto as milícias quanto as elites empresariais/financeiras se entranharam no Estado, conquistando apoio político, cargos estratégicos e atuando direta ou indiretamente no parlamento. No Estado estão infiltrados os agentes públicos de segurança relacionados à família Bolsonaro e os membros do mercado financeiro que entram e saem da equipe econômica de Guedes.

Em conclusão, a elite empresarial/financeira apadrinhada por Guedes e as milícias apadrinhadas por Bolsonaro cresceram nos últimos dois anos em decorrência do estado fraco que ambos criaram e da necessidade que os cidadãos possuem de recorrer a tais grupos para sobreviver. O resultado do leilão da CEDAE mostrou que a dupla está à vontade para compartilhar o espaço estatal e as oportunidades oferecidas pelos seus respectivos padrinhos políticos.  A diferença é que enquanto a elite financeira tem como alvo quem consegue pagar pelos seus serviços, a milícia foca o ataque nas classes mais populares, numa comunhão de interesses em que quem mais perde são os vulneráveis, cada vez mais desprovidos de direitos fundamentais. No caso da água, a população da Zona Oeste do Rio de Janeiro ficou sem a promessa de avanço que viria com os serviços privatizados e sem a esperança anteriormente existente de que os lucros gerados na operação dos serviços prestados ao consumidor de maior poder aquisitivo fossem destinados à melhora dos serviços estatais nas regiões mais prejudicadas.

 

Referências

 

Folha de São Paulo, 06/04/2021. 20 brasileiros entram no ranking de bilionários da Forbes. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/20-brasileiros-entram-no-ranking-de-bilionarios-da-forbes.shtml

Freire, Paulo (1974). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.

Manso, B. (2020). A República das Milícias. Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia. 1ª ed., 2020, 304 pgs.

Site G1, 30/04/2021. Leilão da Cedae arrecada mais de R$ 22 bilhões pelos blocos 1, 2 e 4; bloco 3 não recebe oferta. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/04/30/primeiro-lote-do-leilao-da-cedae-e-vendido-com-mais-de-100percent-de-agio-sobre-o-lance-inicial.ghtml

UFF/UFRJ (2021).  A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ), janeiro de 2021.

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