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A participação dos atores militares na política e a difusão de ideias de extrema-direita

Paulo Flores

Doutorando e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo, onde estuda o Estado de bem-estar social.

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Desde o processo que resultou no golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016, observamos o aumento do alcance de ideias de extrema-direita na sociedade e o crescimento da presença de militares em eventos políticos, em cargos eletivos e em cargos por nomeação.

A concomitância destes fenômenos e a atual associação entre oficiais militares e emissão de fake news no cenário de eleições torna ainda mais urgente debater a politização de quadros militares e os riscos que esta politização coloca à ordem democrática. É nesse contexto que se produz o presente texto, a partir de pesquisa qualitativa de acompanhamento de manifestações políticas exclusivamente públicas feitas por oficiais das forças armadas e policiais militares.

Ainda que muitas vezes os militares sejam tratados como um grupo homogêneo, dada sua conhecida adesão a agendas conservadoras, há diferenças importantes entre as trajetórias e estratégias de atuação de militares que compõem ou defendem publicamente o governo de Jair Bolsonaro. Eles podem ser agrupados em pelo menos duas frentes.

A primeira frente corresponde a militares que concorrem a cargos eletivos. Esse grupo é composto majoritariamente por militares de menor patente e oriundos de polícias estaduais. Sua atuação é concentrada em redes sociais de grande alcance[1] e as publicações buscam instigar engajamento em temas de apelo ao eleitorado bolsonarista, como confiabilidade das urnas eletrônicas e acesso a armas de fogo. Esses militares se apresentam ao eleitorado como uma tropa de defesa incondicional a Jair Bolsonaro.

O segundo grupo é composto por oficiais de alta patente das Forças Armadas, sobretudo generais da reserva do Exército, que produzem conteúdo político para consumo em círculos frequentados pelos próprios militares. Esses militares possuem atuação pública mais discreta, mobilizam teses revisionistas relativamente abstratas (focam mais em processos e conjuntura, menos em atores e políticas específicas), caracterizadas por revisionismo histórico, apoio ao Golpe de 1964 e construção de paralelos históricos entre o período pré-1964 (“ameaças comunistas” e “caos social”) e a atual conjuntura. Ainda que os discursos desses oficiais nem sempre mencionem diretamente Jair Bolsonaro ou eventos relacionados à sua presidência, há elevado grau de adesão às pautas bolsonaristas.

Parte dos militares nomeados para cargos de primeiro e segundo escalão em Ministérios e Secretarias do governo Bolsonaro frequentava esses círculos de debate político-militar antes de 2018[2].

Para chegar aos resultados apresentados neste artigo, a pesquisa acompanhou manifestações políticas feitas por militares exclusivamente a título pessoal e de maneira pública, por meio de suas redes sociais, artigos publicados em jornais e revistas, mensagens postadas no Twitter e vídeos divulgados no YouTube pelos próprios atores ou canais que os entrevistaram. Notas e documentos oficiais das Forças Armadas ou polícias não foram consideradas.

A decisão metodológica de abordar apenas manifestações públicas dos atores foi tomada com o objetivo de identificar os discursos e estratégias de difusão de ideias deliberadamente adotadas por atores militares de extrema-direita na sociedade.

Nesse sentido, os resultados apresentados neste artigo não nos permitem traçar um panorama sobre o pensamento político das Forças Armadas ou polícias, mas sim o pensamento e as estratégias de militares que optam por se manifestar politicamente perante a sociedade a partir de adesão individual ao campo ideológico de extrema-direita.

O presente artigo possui mais três seções. Nas duas próximas serão apresentados em mais detalhes o perfil de atuação política de militares do circuito eleitoral e de oficiais de alta patente das Forças Armadas. Na seção final apresento as conclusões do artigo e destaco pontos importantes a serem explorados em análises futuras.

Militares na frente eleitoral: estratégias bolsonaristas e propagação de agendas conservadoras para o grande público

As eleições de 2018 foram marcadas pelo aumento das candidaturas militares, associadas à crescente capacidade de penetração das agendas bolsonaristas na sociedade e aos elevados índices de intenção de votos que o então candidato a presidente Jair Bolsonaro obtinha nas pesquisas eleitorais. Em São Paulo, por exemplo, o número de candidatos militares a deputado estadual saltou de 43 em 2014 para 80 em 2018, de acordo com informações do jornal Folha de S. Paulo.

Ainda que o desempenho de Jair Bolsonaro nas pesquisas eleitorais esteja pior em 2022, o pleito desse ano também registrou aumento nas candidaturas militares a cargos eletivos, saltando de 1,3 mil em 2018 para 1,7 mil em 2022 (aumento de 27%), segundo levantamento do portal G1.

A base eleitoral mais fiel e ideológica de Bolsonaro é, isoladamente, insuficiente para lhe garantir a reeleição, mas é grande o suficiente para que militares de extrema-direita considerem viável atrelar suas imagens a Bolsonaro em candidaturas para cargos legislativos.

Destaca-se, no conjunto de candidaturas militares, um subgrupo que integra a autodenominada “Frente Parlamentar Lealdade Acima de Tudo”. A frente de candidatos[3] é composta por 23 pessoas, dos quais nove são militares, parte deles já com mandato na atual legislatura, parte buscando a primeira eleição em 2022. O grupo é liderado pela deputada Carla Zambelli (PL) e se apresenta ao eleitorado como a bancada do Bolsonaro.

Os nove candidatos militares da frente são: deputado Capitão Alberto Neto, deputado Chrisóstomo de Moura, deputado estadual Cabo Gilberto Silva (pré-candidato a deputado federal), deputado estadual Tenente-Coronel Zucco (pré-candidato a deputado federal), deputada Major Fabiana, deputado General Girão, deputado José Medeiros, Silvia Waiãpi, Coronel Aginaldo (marido de Carla Zambelli). Entre os membros da frente o único que não está filiado ao PL, partido de Bolsonaro, é o tenente-coronel Zucco, do Republicanos. Também foram analisados os perfis de outros dois militares fortemente ligados ao bolsonarismo, o deputado federal cabo Junio Amaral (candidato à reeleição pelo PL-MG) e deputado major Vitor Hugo (candidato ao governo de Goiás pelo PL).

Ainda que seja composta quase em sua totalidade por membros do PL, o grupo funciona na prática como membros de um partido paralelo e informal de Bolsonaro. Os candidatos raramente citam o partido ao qual estão filiados em suas manifestações públicas, quase todos se apresentam com suas patentes militares, abordam temas conservadores e postam fotos com Bolsonaro.

Seus membros adotam um leiaute similar nas redes sociais (cores da bandeira nacional, montagem de imagens abraçados com Bolsonaro, ou com fotos de manifestantes bolsonaristas ao fundo) e a temática de suas publicações nas redes sociais coincide temporalmente com frequência (ataque a instituições da República quando estas contrariam os interesses de Bolsonaro, críticas a opositores quando alguma agenda está em pauta). É comum a inserção das expressões “Deus”, “Pátria”, “Família”, “Religião” em imagens das publicações. A maioria dos candidatos militares bolsonaristas se declara cristão, sem informar se católico ou protestante.

Dos onze candidatos, dez que integram a frente “Lealdade Acima de Tudo” adotam o mesmo número para deputado federal nas urnas (cada um por um estado). Os três que não adotam o mesmo número na urna são um candidato a governador, outro a deputado federal pelo PL que, em referência ao revólver, optou por “38” como dois últimos números na urna, e outro candidato a deputado federal filiado ao Republicanos.

As referências de vinculação institucional apresentadas pelos candidatos ao eleitor nas redes sociais giram em torno do núcleo do bolsonarismo ideológico, tanto em termos de temáticas quanto de estética. As publicações realizadas pelos candidatos da frente eleitoral giram em torno, principalmente, de quatro pontos: acusações de que Lula é corrupto; alertas para o risco de uma “ditadura de esquerda”, risco de fraude nas urnas eletrônicas; defesa de valores da família.

A quantidade de seguidores dos candidatos militares varia de acordo com a plataforma mais usada por cada um deles. No Instagram, por exemplo, o número de seguidores varia de 12,2 mil (caso do deputado Chrisóstomo Moura) a 272 mil (caso do cabo Gilberto Silva). Já no Facebook, os números variam de 5,3 mil (caso do coronel Aginaldo) a 1,5 milhão (caso do capitão Alberto Neto). Considerando a amostra como um todo, apenas dois candidatos (Silva Waiãpi e Chrisóstomo Moura) não possuem pelo menos 50 mil seguidores em nenhuma rede social.

A forma de comunicação dos candidatos militares da frente bolsonarista são publicações com caráter de denúncia e alerta para a população, com afirmações curtas, sem apresentação de fontes independentes que permitam checagem e, por vezes, uso de vocabulário ou frases agressivas. A lógica das publicações segue uma estratégia argumentativa maniqueísta, segundo a qual os candidatos militares e o atual presidente representariam o bem, a honestidade, a liberdade, o respeito à família, enquanto os opositores representariam o mal, a corrupção, defesa de ditaduras, a censura (forma como classificam o combate à fakenews) e destruição da família e religião.

Nesse sentido, são comuns publicações em que os candidatos militares se referem ao ex-presidente Lula como “bandido” beneficiado por “manobras jurídicas” do Supremo Tribunal Federal, afirmam que as pesquisas eleitorais são falsas porque Bolsonaro consegue mobilizar apoiadores em motociatas, que sem voto impresso as eleições podem ser fraudadas, que a esquerda defende ditaduras socialistas e quer atacar as liberdades individuais. Questões associadas à realidade concreta da população, como alta inflacionária, congelamento do salário-mínimo real, precarização dos postos de trabalho ou os resultados negativos do modelo de gestão da pandemia adotado pelo governo federal não são mencionadas pelos candidatos militares, nem ao menos para apresentação de justificativas que pudessem isentar o governo federal de responsabilidade. O preço da gasolina, por exemplo, só passou a ser tema de publicações dos candidatos militares bolsonaristas após medidas de redução de impostos se refletirem em queda nos preços dos combustíveis.

Análises políticas de militares de alto escalão: lógicas maniqueístas, “combate aos comunistas” e “defesa da pátria”

O segundo grupo de militares atuantes no debate público analisado neste artigo refere-se a oficiais das Forças Armadas que debatem política em círculos militares. Um dos mais importantes ambientes de apresentação das ideias políticas desse grupo é o Clube Militar, vinculado a oficiais da reserva do Exército. Há também militares de alta patente da reserva da Aeronáutica e Marinha que expõem posicionamentos políticos em canais próprios do YouTube ou em canais de veículos de comunicação de extrema-direita.

Os militares desse grupo apresentam narrativas mais abstratas, realizam poucas referências a episódios políticos pontuais e abordam o golpe de 1964 e os crimes cometidos por militares durante a ditadura por uma perspectiva de revisionismo histórico-.

Em textos publicados na revista do Clube Militar, generais da reserva chegam a afirmar que o Brasil viveria atualmente sob um regime democrático por causa das ações autoritárias dos militares no passado.

Os argumentos desse grupo de militares são apresentados, como pelo outro grupo, de forma maniqueísta, similar às propagandas de regimes totalitários em que aliados do governo são apresentados como impolutos, defensores do bem, que prezam pela prosperidade da sociedade e agem de maneira colaborativa, enquanto os opositores são tratados como inimigos, agentes que buscam dividir a sociedade e destruir valores que balizam a vida em comunidade.

O tratamento de opositores como “inimigos da nação” é dirigido a todos os atores ou instituições que discursam ou agem contrariamente aos interesses do governo Jair Bolsonaro, sejam adversários históricos, sejam ex-aliados que desembarcaram do governo.

Nesse sentido, os ataques são especialmente frequentes contra o Supremo Tribunal Federal e o campo progressista (ora chamada de esquerda, ora de comunistas). Nas manifestações políticas observadas, oficiais da reserva afirmam haver um complô entre o STF, que toma decisões com o objetivo de prejudicar o governo Bolsonaro e viabilizar a candidatura de Lula e a esquerda. Os oficiais afirmam sua diferença em relação ao campo da esquerda ao acusá-lo de ser contrário a valores familiares e religiosos.

Por fim, e particularmente importante do ponto de vista da identificação de narrativas e estratégias de um grupo importante de oficiais da reserva, são fortes e frequentes referências ao golpe de 1964 e à ditadura militar que vão além da tentativa de legitimar o golpe e os crimes cometidos pelo regime autoritário. As narrativas traçam paralelos entre as conjunturas políticas passada e presente: os atores do bem e do mal, a luta dos patriotas e a ameaça dos comunistas, os que servem e são tementes a Deus e os pecadores a serviço do Diabo.

A lógica parece ser induzir o leitor a imaginar o risco de ocorrerem hoje catástrofes sociais que foram, ao ver dos autores do conteúdo consultado, evitadas pelos militares com o golpe e a ditadura. Há, assim, uma estratégia de legitimação das ações autoritárias e corruptas do governo Bolsonaro como garantidoras de honestidade e liberdade, em evidente paralelo com a leitura revisionista do golpe de 1964 e a ditadura militar, que teriam atuado de maneira autoritária e violenta justamente para garantir a democracia que vivemos hoje, a liberdade e a paz social. Mais do que limitar-se a atenuar, justificar ou negar a ocorrência de uma ruptura violenta da democracia e os crimes humanitários cometidos pelo regime militar, conferir legitimidade ao golpe de 1964 e à ditadura militar aparece no discurso dos militares como um componente de legitimação das ações autoritárias e movimentos antidemocráticos do próprio governo Bolsonaro.

Considerações finais

No presente artigo, abordei dois grupos militares que atuam no campo político-ideológico da extrema-direita e busquei demonstrar que, ainda que defendam as mesmas agendas conservadoras e justifiquem medidas autoritárias do presente e do passado, há diferenças importantes em suas formas de atuação e no público que cada um visa atingir.

O desenho da pesquisa não nos permite realizar afirmações sobre “o pensamento militar” ou “a ideologia dos militares” de maneira ampla. O esforço analítico neste artigo concentrou-se apenas em uma amostra de militares que se manifestaram publicamente no campo da extrema-direita. Nesse sentido, a identificação de possíveis grupos de militares que tenham outros posicionamentos políticos depende de realização de novos esforços de pesquisa.

Com relação aos grupos analisados, foi possível identificar a formação de uma rede com recursos políticos e institucionais para perdurar mesmo diante de uma eventual derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Enquanto um grupo, de oficiais de alta patente, se filia a narrativas revisionistas que remetem ao golpe de 1964, o outro grupo controla recursos institucionais inerentes a detentores de cargos eletivos, sendo que a quantidade de candidaturas militares está crescendo. Nesse sentido, é importante que atores comprometidos com as instituições democráticas e as relações republicanas entre os Poderes estejam atentos a dispositivos e recursos institucionais que incentivam a participação política de atores militares.

[1] Ainda que haja expectativa de que candidatos se exponham a público para obtenção de votos, o sucesso depende da construção de estratégias de comunicação e divulgação de conteúdo para ser bem-sucedida. Essa estratégia comumente passa pela formação de redes internas a partidos, sindicatos ou associações civis. No caso dos militares do círculo militar, há uma autorreferência entre os candidatos, citações, com raras menções aos partidos políticos a que são filiados ou fotos em convenções

[2] O vice-presidente, general Hamilton Mourão, por exemplo, ocupava a presidência do Clube Militar durante a eleição de 2018.

[3] Frentes Parlamentares são formadas internamente às Casas Legislativas por deputados e senadores em exercício de mandato. Portanto, a frente de candidatos bolsonaristas não é, de fato, uma frente parlamentar. O recurso estratégico de adotar esse nome para o grupo será abordado mais adiante

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