A despeito de possuírem expressa disposição constitucional (art. 103, § 2º) e receberem disciplina processual específica (Lei 12.063/2009), as ações diretas de inconstitucionalidade por omissão parecem não ter agradado aos operadores jurídicos. A recalcitrância no uso do importante remédio constitucional que, aparentemente, contaminou desde os legitimados à propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, passando por aqueles que advogam as teses e escolhem os meios hábeis a defendê-las, complementa-se na resistência do Supremo Tribunal Federal ao julgar tais medidas.
Pode-se afirmar que se justifica a parcimônia na adoção de tais remédios pela intenção em preservar-se o equilíbrio constitucional com a separação entre os três poderes, sendo, assim, recomendável ao Poder Judiciário evitar imiscuir-se em assuntos da competência do Poder Executivo, assumindo tal intromissão, contudo, em situações extremas e de forma excepcional. Certamente, por isso, o histórico destas ações não aponta mais do que algumas dezenas de exemplares desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Mesmo cientes deste retrospecto, PCdoB, PSOL e PT decidiram provocar o Supremo Tribunal Federal propondo duas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão em razão da ausência de políticas públicas federais no combate à pandemia do Coronavírus. Essas ações autuadas sob nº. ADO 65 e 66 foram submetidas à plenário virtual no Supremo Tribunal Federal e já contam com voto do Ministro Marco Aurélio, relator destes processos, assim como da Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, ajuizada por centrais sindicais e por entidades do Conselho Nacional de Saúde que tem objeto e pedidos parecidos.
No voto, o Ministro Relator deixou assentado o estreito campo para o cabimento de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, mas reconheceu a pertinência das medidas a considerar a gravidade do cenário pandêmico no país, em especial ante à atuação deficiente do Governo Federal:
A época é de crise generalizada na República. A inércia do Governo Federal relativamente à formulação e implementação de políticas voltadas à concretização do direito à vida e à saúde é agravada considerados o negacionismo quanto à gravidade da doença, a recusa inicial em adquirir vacinas, a ensejar o atraso na compra, a reiterada e persistente omissão de autoridades públicas na observância de medidas envolvendo o uso de máscara e o distanciamento social, o incentivo à realização de aglomerações e a disseminação de inverdades relacionadas ao tratamento da doença.
Parece redundante falar-se na gravidade da crise sanitária no país no momento vivido, quando se superou o triste patamar de 500 mil mortos e depara-se com uma média móvel diária superior a 2 mil vidas ceifadas. Faltam leitos em hospitais e vagas em UTIs, assim como a vacinação caminha a passos lentos e indecisos, caminhar permeado pela paralisação em vários dias por escassez do imunizante.
Tais circunstâncias são agravadas pela ausência de coordenação federal ao combate à pandemia. Mostra-se emblemático que no 17º mês do primeiro diagnóstico da doença no Brasil possa-se afirmar não ter havido sequer uma campanha publicitária do Governo Federal para conscientizar a população sobre as medidas de prevenção ao contágio do vírus, como distanciamento social e o uso de máscaras.
Mais do que isso. Deve-se ressaltar as inúmeras atitudes – incluindo uma ação judicial junto ao STF contra os munícipios e governos estaduais – do presidente da república contra as poucas e insuficientes medidas de distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos.
A retórica negacionista do presidente da república, e de quem mais se opõe às políticas de distanciamento social, baseia-se na minimização da gravidade e da importância da doença, bem como em privilegiar a preservação da economia brasileira em detrimento da saúde e da vida de brasileiros e brasileiras.
A contraposição entre direito à vida e à subsistência não chegou a ultrapassar a seara do discurso governamental. Pode-se asseverar que as omissões do governo federal foram graves em ambos os aspectos, não sendo factível falar-se em privilégio de um em favor de outro. Mas, em omissão em ambos.
No momento em que a crise sanitária se agudiza, a crise econômica a acompanha. Pequenas e microempresas – abandonadas pelo Estado – desprovidas de linhas de crédito de acesso fácil e simplificado encerram suas atividades econômicas e, por consequência, desempregam.
Não é de se surpreender com os índices de desemprego alcançando recordes a cada novo trimestre. Somados os números de trabalhadores(as) desocupados(as), subutilizados(as) e desalentados (quem embora desempregado tenha desistido de procurar por trabalho), relavados pela última pesquisa PNAD[1], conclui-se que mais de 35% da população economicamente ativa está submetida à ausência de renda ou à renda precária. Isso sem contabilizar o grande número de trabalhadores(as) informais (39% da mão de obra ocupada).
Em cenário tão desolador, a fome haveria de ressurgir e de se espraiar. De acordo com levantamento da Rede Nacional de Pesquisas em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional, no final de 2020, havia aproximadamente 19 milhões de pessoas passando fome com mais da metade dos lares brasileiros apresentavam algum nível de insegurança alimentar.
O Governo Federal não procurou, verdadeiramente, criar diretrizes e políticas públicas para combater os efeitos econômicos da pandemia. A ação estatal restringiu-se a tentar responsabilizar os demais entes federados pela crise na economia brasileira.
A conclusão não haveria de ser distinta: ausentes políticas públicas de saúde e de economia para enfrentar a gravidade do cenário pandêmico no país, as constantes omissões do Governo Federal conduzem o país ao caos sanitário, econômico e social.
O julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão movidas por PCdoB, PSOL e PT prosseguirá no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal tendo o prazo de 2 de agosto para encerrar.
[1] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30784-pnad-continua-trimestral-desocupacao-cresce-em-oito-das-27-ufs-no-1-trimestre-de-2021