O Séc. XXI tem fornecido bons exemplos para demonstrar como o Estado Penal, perambulando dos pampas gaúchos à região amazônica, é um andante orgulhoso. Apesar do aparente fracasso punitivo percebido em nossos cárceres medievais, o Estado Penal, que seleciona, criminaliza e aprisiona pessoas, mostra-se eficiente na gestão da endêmica desigualdade social brasileira. Com efeito, é nesse enredo que a defesa criminal, rotineiramente, busca expor e limitar a irracionalidade punitiva, como observado nos recentes casos do furto de massa, em São Paulo, e alimentos estragados, em Uruguaiana (RS)[i]. Além disso, os atores do campo defensivo não se cansam de reiteradamente denunciar a latente engrenagem de criminalização que nos assombra sem pudores, especialmente quando se desvela diante de furtos famélicos ou bagatelares.
Assim, cabe recordar Zaffaroni que em seu “O nascimento da Criminologia Crítica”, publicado no Brasil em 2020[ii], revela como foram poucas as mudanças observadas nos últimos cinco séculos em termos de funcionamento das estruturas de controle e punição. Noutros termos, na referida obra, o jurista argentino estabelece importantes pontos de conexão entre as estruturas profundas do punitivismo inquisitorial e daquele ainda operado pelos estados contemporâneos.
Dentre as muitas semelhanças apontadas, entendemos merecedora de destaque a necessidade de estabelecimento de estereotipias passíveis de estigmatização e, logo, de uma atuação excludente que reafirme continuamente quem são os dominantes e quem são os dominados, diferenciando-os com a máxima nitidez. Assim, com o transcorrer da história, noutros contextos e sob outros regimes, a função legitimante da dominação e do exercício de seu poder punitivo um dia reservada às bruxas foi sendo transferida a outros personagens, como destacadamente se deu com os judeus e como ainda se dá com diversos grupos minoritários, mulheres, negros, imigrantes e pobres.
Aliás, nessas relações de poder estruturadas entre os que prendem, acusam, punem e os selecionados ao banco dos réus, talvez possamos encontrar um esquema-chave à reflexão sobre a distância do sistema de justiça penal e a realidade dos brasileiros, abismo que autoriza a distribuição de dramáticas etiquetas aos que sentem fome. Como bem leciona Leandro Konder:
Com a divisão social do trabalho é que a situação muda. A divisão da sociedade em classes repercute em cada indivíduo. Já não é mais razoável esperar que cada indivíduo veja realmente no próximo um seu semelhante, isto é, um indivíduo potencialmente igual a ele, porque, com a diferenciação das condições sociais e a pertinência a diferentes classes, a semelhança entre os indivíduos sofre um esvaziamento de sentido. Como é que um aristocrata proprietário de escravos, desfrutando do ócio que lhe proporciona a exploração do trabalho alheio, poderia ver com clareza e concretamente no escravo que lhe está subjugado um seu igual?[iii]
Nesse toar, com o avanço do neoliberalismo e a superação pelo consumismo globalizado das bases econômicas de produção industrializada sobre as quais antes se estruturava ao menos boa parte das sociedades ocidentais, profundas alterações são também observáveis nos modos de funcionamento das estruturas de controle e punição. Nesse sentido, se antes os mecanismos da privação de liberdade se voltavam ao controle e disciplina do corpo para melhor disponibilizá-lo às cadeias de produção[iv], na medida em que o consumo emerge como dínamo primeiro do funcionamento social, o aprisionamento passa a se destacar como técnica de inviabilização dos problemas sociais, instrumento de gestão da miséria[v], as antigas estruturas tendencialmente panópticas hoje funcionando como depósitos de não-consumidores ou consumidores falhos[vi]. E não nos esqueçamos da militarização do controle social e eliminação de “inimigos internos”[vii], tudo isso profundamente racializado no Brasil.
Num país de presente e futuro tão pretéritos quanto o nosso, nada mais lógico que sejam os miseráveis de hoje mera continuidade dos de ontem. Ou seja, se numa dimensão macro os mecanismos de controle e punição seguem repetindo o que se observava ao tempo da inquisição, no plano micro, em termos de Brasil, esses mecanismos reeditam aqueles vigentes ao tempo da escravidão. Mudam os discursos e as teorias, mas a realidade e as práticas que a instituem demonstram que as estruturas profundas de controle e repressão no Brasil seguem reafirmando a estigmatização da parcela da população que, se antes era presa a ferros em navios e senzalas, hoje é segregada em favelas e prisões.
Nosso controle e punição têm preferência pelas cores mais escuras e muita fome de miséria, predileção que se revela mesmo quando o aparato repressor se aventura pelos segmentos simbólica ou economicamente mais elevados[viii]. Noutros termos, quando não age diretamente sobre a miséria e os estigmatizados, o sistema penal busca quem possa representá-los, de modo a assegurar que tudo permaneça como sempre foi, as pequenas exceções autorizadas sob as bênçãos da retórica meritocrática servindo apenas para confirmação da regra que bem distingue os dominantes e os dominados de sempre.
Certo é que os momentos de crise tendem a agravar as diferenças e acentuar os esforços no sentido de mantê-las a salvo, convocando as classes dominantes – ditas elites – e seus guardiões a investidas cada vez mais violentas com vistas à exclusão daqueles outros cuja miserabilidade ameaça sua pureza. São rituais de purificação e afirmação de superioridade que exigem alguns sacrifícios, afinal o bem só pode ser reconhecido diante de um mal claramente definido e, de preferência, encarnado.
Nesses momentos críticos, a fim de evitar a barbárie, a fim mesmo de evitar que a crueldade seja imposta pelas instâncias responsáveis por contê-la nos limites civilizatórios, havemos de nos socorrer da ética como proteção diante da brutalidade técnica. Devemos nos lembrar das lições kantianas que animaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e reger-nos a partir da compreensão de que, enquanto algumas coisas são substituíveis e por isso têm preço, outras não têm equivalência, e por isso são dotadas de dignidade[ix]. Assim são a liberdade e toda e qualquer vida humana, que não podem ser precificadas porque não têm equivalente, mas, sim, dignidade, na medida em que portam em si potências de toda a humanidade.
Em preservação a esse princípio que nos faz igualmente humanos, irredutíveis a coisas, não podemos perder a capacidade de espanto e de indignação diante das pessoas reduzidas à mais degradante penúria, frente à humilhação da busca por ossos como alimento ou face ao crescente número dos que procuram saciar sua fome no lixo. E esse espanto e essa indignação hão de se transformar em não menos que horror se o Estado, incapaz de assegurar um mínimo de dignidade a seus cidadãos, converte-se em criminoso cruel e indigno ao insistir em (sobre)puni-los pela miséria à qual os abandonou.
Se até aqui acusações formais por furtos de alimentos e produtos de higiene de valor irrelevante são mais que comuns, até mesmo banalizadas[x], nem por isso podemos recusar o espanto diante da insistência em uma persecução penal em razão de afirmado furto de… lixo[xi] (a princípio, diga-se, um crime impossível, por se tratar de coisas descartadas – res derelictae). É preciso repensar os limites admitidos à marcha de regressão civilizatória a que aderimos e decidir se abraçamos o compromisso com o futuro firmado pela Constituição ou nos mantemos aferrados ao enredo de um passado composto por casas grandes, senzalas, capitães-do-mato, capatazes e escravos, ainda que com novos figurinos e sob nova direção.
Domingos Barroso da Costa
Defensor Público no Rio Grande do Sul.
Andrey Régis de Melo
Defensor Público no Rio Grande do Sul.
Marco Antonio Kaufmann
Defensor Público no Rio Grande do Sul.
Rafael Raphaelli
Defensor Público no Rio Grande do Sul.
Pedro Carriello
Defensor Público no Rio de Janeiro.
Diego de Azevedo Simão
Defensor Público em Rondônia.
Flávio Aurélio Wandeck Filho
Defensor Público em Minas Gerais.
[i] Para saber mais sobre o caso: https://www.defensoria.rs.def.br/dpe-rs-atua-para-assegurar-absolvicao-de-homens-presos-por-furtar-alimentos-vencidos-do-setor-de-descarte-de-supermercado
[ii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: Spee e a Cautio Criminalis. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
[iii] KONDER, Leandro. Marxismo e Alienação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 45.
[iv] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 1987; MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI e XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
[v] GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006; WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[vi] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
[vii] GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
[viii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 1991.
[ix] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 1785/2009. p. 265.
[x] Como aqueles analisados pelo STF nos HCs 207015/MG, 181389/SP e 187500/RJ, bem como pelo STJ, no RHC 126272/MG e no HC 699572/SP, dentre inúmeros outros.
[xi] No que fazemos referência a fato ocorrido em Uruguaiana/RS, processado sob o nº 0002526-66.2020.8.21.0037.