I – INTRODUÇÃO.
- O direito positivo contém, como ordem e conceito, a partir do Preâmbulo da Constituição, a possibilidade de medir-se por si mesmo. Essa condição é que dá forma à sua racionalidade, bem como promove a sua capacidade de adaptar-se a novas situações, num ambiente institucional democrático, com duas balizas bastante claras: a primeira é a que instaura uma dogmática de “efetividade” dos direitos fundamentais; e a segunda é a que assenta uma ordem capaz de ser coerente com a sua positividade.
- A Emenda Constitucional nº 114/2021, em sua origem, invoca um conflito distributivo, instalado entre duas obrigações da União: i) a primeira refere à obrigação primária de pagar as suas dívidas, especialmente aquelas decorrentes da transgressão do Ordenamento Jurídico em desfavor de particulares; ii) a segunda diz respeito à obrigação de conceder um auxílio emergencial destinado a pessoas em situação de miséria e vulnerabilidade.
- O conflito que a EC 114/2021 enseja, como política de Estado, sobretudo se a vier a ser julgada constitucional, resulta numa diluição por inteiro da racionalidade de “duas balizas” (ou de dois fundamentos medulares) de qualquer Constituição democrática, especialmente das Constituições Sociais do Século XX. A EC 114/2021, quando põe em concorrência o princípio da “igualdade perante a lei”, de um lado e, de outro, o “princípio da inviolabilidade dos direitos”, se consolidada numa decisão judicial, caminha para a corrosão do Estado Constitucional.
- No que refere às dívidas com os segurados da previdência e com os servidores públicos, no rol de precatórios decorrentes de direitos vulnerados, às vezes durante mais de uma década, as duas “balizas” adquirem valor estruturante do sentido da Constituição Social. Trata-se de, pela “efetividade” do acesso à Justiça, obter o cumprimento de leis fundadas em direitos constitucionais fundamentais, que estão protegidos nos princípios da inviolabilidade dos direitos, da igualdade perante a lei, da segurança jurídica e assim perante a própria possibilidade de “fazer cumprir a lei”.
II – ANÁLISE PRELIMINAR DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS.
- As Emendas Constitucionais nº 113/2021 e 114/2021 introduzem o Novo Sistema de Pagamento de Precatórios, estabelecendo um teto de gastos rebaixado para quitação de precatórios habilitados, que incidirá ano após ano, até 2026, suspendendo o pagamento de mais de dois terços dos valores devidos pela União, já no primeiro exercício de sua vigência (2022). Trata-se de uma apropriação indébita de créditos que já estavam internalizados nos patrimônios individuais de muitas dezenas de milhares de sujeitos de direito. Segundo estimativas técnicas, o regime de exceção imposto tende a acumular ao longo dos anos de sua vigência, uma dívida para a União de mais de meio trilhão de reais.
- Cumpre adiante examinarmos as normas estruturantes do denominado Novo Regime de Pagamento de Precatórios, identificando as suas principais determinações.
II.1 – O teto de gastos com precatórios e a destinação do espaço fiscal aberto.
- O art. 2º da EC 114 introduz no art. 107-A e § 1º, do ADCT, uma regra que institui o “teto de gastos” para pagamento dos créditos certificados pela jurisdição, incidente ano após ano, nos orçamentos aprovados até o fim de 2026. Este teto é calculado a partir do gasto com precatórios realizado no ano de 2016 – ano da instituição do teto de gastos geral da União, pela EC 95 -, corrigido pelo IPCA. O valor corrigido é reduzido do montante projetado no orçamento para o pagamento de requisições de pequeno valor, que estavam fora do sistema de pagamento de precatórios.[1]
- A parte final deste enunciado normativo vincula a aplicação do espaço fiscal aberto ao pagamento de uma renda básica conferida às pessoas em situação de vulnerabilidade, prevista no §1º do artigo 6º e a benefícios previdenciários enunciados no art. 194, ambos da Constituição Federal.
- Sendo atualizado pelo IPCA o valor o gasto em 2016, de 30,3 bilhões de reais, chegamos a um valor para 2022 em torno de 40 bilhões de reais, que será reduzido na ordem de cerca de 17 bilhões de reais, correspondentes aos créditos de pequeno valor orçados para o mesmo exercício.
- O teto para pagar precatórios fica então reduzido a cerca de 23 bilhões de reais, muito abaixo do montante dos precatórios habilitados para 2022, que chegou a mais de 89 bilhões. Desse montante, deve ser reduzida a soma de cerca de 16 bilhões de reais, correspondentes a precatórios habilitados por Estados e Municípios, originários de créditos do FUNDEB retidos pela União, que foram deslocados pelas Emendas para fora do teto. Resta assim o volume a pagar a cerca de 73 bilhões de reais em 2022.
- Assim sendo, já no primeiro ano de vigência do denominado novo regime de pagamento de precatórios, teremos um montante de cerca de 50 bilhões de créditos remanescentes. Registre-se que este teto já vem sendo superado em muito pelo montante de créditos representado por precatórios habilitados nos últimos anos.
II.2 – Dos precatórios remanescentes a cada ano: postergação do pagamento para anos seguintes ou negociação com deságio.
- a) Pagamento dos créditos sobrantes nos exercícios subsequentes.
- Os precatórios que não serão pagos em razão do teto previsto nessa norma terão prioridade para pagamento em exercícios seguintes (§2º), mas observada a ordem cronológica enunciada no parágrafo oitavo deste artigo 107-A, do ADCT.[2]
- O § 8 do art. 107-A, introduzido pela EC nº 114/2021, estabelece uma ordem para a quitação dos créditos habilitados contra a União em decorrência de decisões judiciais transitadas em julgado. Os créditos serão hierarquizados começando com requisições de pequeno valor (RPVs), seguindo-se precatórios alimentares preferenciais de idosos e portadores de doenças graves (até três vezes o teto para gerar emissão de RPVs, hoje equivalente a 66 mil reais), depois precatórios alimentares em geral e precatórios não alimentares. E serão pagos nessa ordem os que couberem no montante disponibilizado, o dito teto de gastos anual com precatórios.
- Os precatórios sobrantes do exercício anterior que forem não alimentares serão pagos no exercício subsequente só na medida em que houver espaço remanescente abaixo do teto, depois de pagos os créditos de pequeno valor e todos os novos créditos alimentares habilitados. É até provável que tais créditos alimentares, que vêm crescendo ano a ano, já excedam o teto de gastos com precatórios no ano de 2023, caso em que sobrarão também precatórios relativos a créditos alimentares para os exercícios subsequentes.
- b) Recebimento com deságio de 40 %, ainda submetido a negociação.
- O § 3º do art. 107-A permite ao credor que não receber o precatório que lhe é devido no ano em que deveria, em razão do teto estabelecido, a possibilidade de entabular negociação com o ente público devedor, a fim de receber seu precatório no exercício subsequente, desde que aceite desde logo deságio de 40% sobre o valor devido, devendo ainda submeter-se à negociação em órgãos especiais a serem criados junto aos Tribunais.[3]
- Nos parágrafos seguintes do artigo 117-A, do ADCT posto pela EC -114, são fixadas diretrizes para a formação destes órgãos especiais de conciliação e estabelecidas condições e formas de pagamento dos precatórios negociados.[4]
II.3 – Utilização de créditos retidos, pelo seu titular, ou por terceiros adquirentes, para compensar débitos com a Fazenda ou aquisição de bens do ente público.
- Os titulares de créditos contra a União representados por precatórios poderão utilizá-los para pagar dívidas que tenham com a própria União; para adquirir imóveis da União; para pagamento de valores de concessões ou delegações de serviços públicos; para pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial promovidas pela União; ou para pagar aquisição de participações societárias de empresas estatais postas à venda, de acordo com o § 11, introduzido no art. 40.[5]
- Terceiros que adquiram de credores da União precatórios habilitados, também poderão utilizá-los para os mesmos fins dos incisos I a V, o que induzirá os titulares de precatórios sobrantes no exercício em que deveriam ser pagos, ou mesmo precatórios recém habilitados, a vendê-los, com deságios crescentes, para os investidores que se dedicam habitualmente a este negócio. À frente deles estão os bancos de segunda linha, como o BTG, que já operam na aquisição de precatórios, para vendê-los a empresas devedoras de tributos, ou adquirentes de bens da União, que os receberá pelo valor de face. O § 14 regula a validação dessas cessões.[6]
II.4 – A correção dos créditos decorrentes de deciões judiciais transitadas em julgado e a supressão dos juros.
- Os créditos contra a Fazenda Pública serão corrigidos pela taxa SELIC, uma única vez, e esta correção já afastaria a incidência de juros, ou qualquer compensação pela mora, conforme o artigo 3º da EC 113/2021.[7]
- Observa-se que a correção feita com base na SELIC, que é habitualmente inferior aos índices que medem a inflação real, produz uma perda de parte do valor devido. Além disso, foram suprimidos os juros moratórios. O STF já negou validade a sistemática equivalente em ADIN que determinou a aplicação de índices compatíveis com a realidade, em defesa do direito de propriedade.[8]
III – AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO.
- O Sistema de Pagamento de Precatórios que foi positivado na Constituição de 1988 sujeitou a execução das decisões judiciais contra a Fazenda Pública a uma demora de mais de um ano, com fundamento no princípio da orçamentação das despesas públicas. Mas tal constitucionalização constituía uma garantia da concretização da tutela jurisdicional, com base no princípio da segurança jurídica, ao estipular que, ultrapassando o prazo previsto, o Poder Executivo estaria descumprindo a Constituição que está obrigado a cumprir.
- Esta obediência é imposta ao Presidente da República pelo artigo 78 da Constituição. Ao tomar posse em sessão conjunta do Congresso Nacional, o Chefe do Poder Executivo presta o “compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição”. Daí porque os poderes constituídos buscam habitualmente afastar as garantias institucionais impostas pela União por meio de emendas ao seu texto, ao tempo em que propagam que é a competência conferida aos poderes constituídos pelo artigo 60 para emendá-la seria ilimitada. Mas não é assim.
- O Novo Sistema de Pagamento de Precatórios instituído pelas Emendas Constitucionais (ECs) 113 e 114 institui uma apropriação indébita de valores já incorporados aos patrimônios individuais de dezenas de milhares de credores da União, depois de resistidos por muitos anos. Trata-se de uma apropriação que se repetirá, ano após ano, até 2026, alcançando um universo de várias de centenas de milhares de pequenos credores e gerando uma acumulação perversa nos exercícios subsequentes, convertendo a restituição em uma estimativa futura e indeterminada.
- A seguir, são questionadas as mudanças operadas no Sistema de Pagamento de Precatórios pelas ECs 113 e 114/2021, em face dos limites explícitos positivados no § 4º, III e IV do art. 60, que protege os direitos individuais fundamentais. As Emendas criam para os credores da União um verdadeiro regime de exceção – o Novo Regime de Pagamento de Precatórios – em que são excluídos direitos e garantias fundamentais.
- Na prática, estará consumada uma violência contra o direito de propriedade de pequenos credores da União, com a falaciosa alegação do imperativo de seu sacrifício como única forma de viabilizar o atendimento aos miseráveis, por meio do Auxílio emergencial, em situação de crise gerada pela pandemia do novo coronavírus.
- O problema resulta de derrogação de um direito individual fundamental que o artigo 5º, caput, e inciso XXII, da Constituição declara ser inviolável.[9] Esse regime de exceção incidirá a cada ano sobre milhares pequenos proprietários que tiveram seus bens desapropriados direta ou indiretamente pela União, para viabilizar a construção de hidroelétricas, barragens, ou estradas, sem pagamento da indenização devida. Também sobre dezenas de milhares de pequenas empresas credoras da repetição de tributos indevidamente pagos. Incidirá ademais sobre dezenas de milhares de titulares de créditos alimentares, decorrentes de benefícios previdenciários sonegados conscientemente, de vencimentos ou parcelas remuneratórias inadimplidos em relação aos servidores do Estado na época devida, que são ambos direitos fundamentais substantivos.
- As Emendas Constitucionais questionadas, obstruindo o alcance do resultado útil do processo, ano após ano, ofende o direito fundamental individual de acesso à Justiça, consagrado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
- O Novo Sistema de Pagamento de Precatórios, instituído pelas Emendas, nega aos credores da União a garantia do devido processo legal, que é um direito individual fundamental de todos os cidadãos, consagrado no Art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que reza: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O processo ad hoc instituído pelas emendas será imposto a dezenas de milhares de credores da União, ano após ano, desguarnecendo direitos fundamentais substantivos, os bens mais relevantes reconhecidos pelo sistema constitucional.
- Trata-se de um processo de exceção que submete os créditos certificados judicialmente contra a União a um aviltamento imediato de seus valores, para induzir a sua venda aos bancos receptadores, explicitamente anunciada no seu texto. Tais receptadores serão os grandes beneficiários da sucessão de apropriações indébitas projetada. Essas apropriações, segundo estudo de órgãos técnicos da Câmara dos Deputados, poderá chegar a 580 bilhões de reais, preparados para serem adquiridos pelos bancos com deságios crescentes.
- O Novo Sistema de Pagamento de Precatórios instituído pelas Emendas 113 e 114 de 2021, além disso, viola a garantia individual que protege a coisa julgada, consagrada no inciso art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República, nos seguintes termos: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”. A negação do efeito principal da coisa julgada, que corresponde ao resultado útil do processo, para um universo determinado de pessoas, implica na subtração de direitos resgatados pela via judicial, o que desconstrói uma peça essencial do sistema de repartição de poderes da República.
- Sobre a violação dos limites explícitos ao poder de emenda constitucional, por ofensa aos direitos fundamentais individuais apontados, o STF já se manifestou, nas ADIs 4357 e 4425, quando os poderes constituídos aprovaram emendas à Constituição que postergavam o pagamento de precatórios habilitados contra Estados e Municípios, já atrasados por vários anos.
- A Exposição de Motivos da PEC 23/2021, que deu origem as Ecs 113 e 114/2021, invoca a redução do espaço fiscal discricionário, necessário para a implementação de políticas públicas em face do crescimento do montante dos créditos contra a União representados por precários. E o discurso do governo e sua base de apoio no Parlamento anunciava que o calote a centenas de milhares de pequenos credores da União era imperativo para a instituição do denominado Auxílio Brasil, num contexto de crise econômico decorrente da pandemia da Covid-19.
- Os poderes constituídos descartaram, nesse passo, o empréstimo compulsório que a Constituição autoriza, no seu artigo 148, por este fundamento – mencionando expressamente o estado de calamidade pública. Segundo o constituinte, ao promovê-lo, a União deve fazer um recorte no universo de contribuintes segundo o critério da sua respectiva capacidade contributiva. E o artigo 150, inciso II dispõe que é vedado aos entes federativos “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
- As Emendas promulgadas instituíram a apropriação arbitrária de ativos de credores da União, repetida por vários anos, com promessa de devolução a fundo perdido, que corresponde objetivamente a uma sucessão de empréstimos compulsórios ad hoc sobre centenas de milhares de pequenos credores da União certificados pela Jurisdição. O sacrifício foi imposto a um segmento desfavorecido no universo de contribuintes, contrariando vedações constitucionais, para ao fim de favorecer um grupo de banqueiros que deveriam ser os primeiros escolhidos para a imposição tributária de empréstimos compulsórios, conforme previsto e regulado pelo Legislador Constituinte. Produziu-se assim um estado de exceção localizado, que gera uma dupla discriminação sobre pequenos credores da União, transferindo renda de baixo para cima. Uma anomalia competa.
- O grupo de credores da União desfavorecidos aumentará ano a ano, alcançando centenas de milhares de pessoas e ficará profundamente desigualado diante dos demais cidadãos, depois de terem seus créditos certificados pela jurisdição, após muitos anos de resistência do ente público. Eles são simultaneamente devedores dos entes públicos por tributos diversos, a começar pelo Imposto de Renda, mas também por taxas sobre serviços públicos como água e luz, seguindo todos sujeitos a ações executivas reforçadas quando inadimplentes. Quando as empresas atrasam os tributos que devem recolher, são cobradas mediante execução fiscal, que é dotada de enorme força coercitiva.
- Maior a discriminação, porquanto, àqueles que contraem obrigações e terão seus créditos cercados das garantias, dispondo de ações executivas com especial força coercitiva. Especialmente a dívidas com o sistema financeiro, quando atrasadas, dão ensejo a medidas reforçadas de cobrança.
- Dessa forma, a promulgação das ECs 113 e 114 importa numa odiosa desigualdade na edição normativa, considerando que as normas da Constituição são leis em sentido lato. E, ao instituir um processo excepcional despido de efetividade, em lugar do devido processo legal, tais Emendas introduzem no ordenamento uma perversa desigualdade na aplicação da lei. Daí resulta que as emendas promulgadas ofendem o postulado da igualdade perante a lei, em sua dupla dimensão. Trata-se do direito individual e princípio fundamental do Estado Constitucional de Direito que guarnece todos os demais direitos fundamentais individuais elencados no artigo 5º da nossa Constituição, conforme enunciado em seu caput[10].
- Importa enfatizar que a igualdade na edição da lei (igualdade na lei) e a igualdade na aplicação da lei constituem duas dimensões do princípio da igualdade perante a lei. No Brasil, as duas dimensões do princípio foram assimiladas integralmente a partir da Constituição de 1988, conforme leciona Celso Antonio Bandeira de Mello[11]:
“Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no artigo 5º caput –que todos são iguais perante a lei. Entende-se em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a a isonomia.
O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela sujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.”
- O princípio da igualdade perante a lei foi consagrado na primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em suas duas dimensões: “a lei deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir” e, além disto, “todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”.
- As duas dimensões da igualdade perante a lei, reconhecidas nos diversos países que avançaram para o Estado Constitucional de Direito, se afirmaram em ordens diferentes. Na Alemanha se afirmou primeiro o princípio da igualdade na aplicação da lei e depois o princípio da igualdade na edição da lei, a igualdade na lei.
- Conforme ALEXY, a dimensão predominante inicialmente na interpretação do enunciado da igualdade perante a lei na República Federal, foi a segunda, a da igualdade na aplicação da lei. O princípio gerava uma obrigação para todos os poderes públicos de aplicar a lei a todos de forma igual: “Como lo sugeri su texto, esta fórmula ha sido durante largo tiempo interpretada exclusivamente en él sentido de un mandato de igualdad en la aplicación del derecho.”[12]
- Foi depois que apareceu a dimensão de igualdade na edição da lei, impondo ao legislador não discriminar as pessoas sem uma razão relevante, considerando a situação particular em que as pessoas estivessem postas. Para a diferenciação do tratamento deveria haver um fator de discrimen, com fundamentação racional. No magistério de Alexy, o Tribunal Constitucional fixou a interpretação do artigo 3º, § 1 da Lei Fundamental da República Federal Alemã que proclama o princípio da igualdade, “no solo como mandato de igualdad en la aplicación del derecho sino también de la igualdad en la formulación del derecho”.
- Na Espanha o caminho foi o inverso. A doutrina, considerando o enunciado do artigo 14 da Constituição espanhola, que consagra “la iguadad ante la lei ” “Contempla, en primer lugar, la igualdad en el trato dado por la ley, que pasa a conceptuar-se como igualdad ‘en la ley’, constituyendo ‘un límite puesto al ejercicio del poder.
- A naturalização da imunidade da Fazenda Pública, sustentada pela doutrina remanescente do Estado Liberal de Direito, se apoia na ideia do Estado como um ente dotado de soberania e a fonte geradora dos direitos individuais através da lei posta pelo Parlamento. Um Estado dotado de supremacia sobre a sociedade, crença remanescente do Estado absoluto. Trata-se agora, no entanto, de uma Constituição que institui os poderes constituídos e os submete ao Direito, impondo-lhes a missão garantir a efetividade dos direitos individuais fundamentais por ela consagrados com a ou garantia de igual medida para todos.
- A ideia da supremacia do Estado sobre a sociedade prevaleceu no Estado de Direito Liberal, porque era o próprio Parlamento que decidia sobre a conformidade das leis que editava com a Constituição e ela era alterável sem obstáculos ou dificuldades pelos poderes constituídos, prevalecendo assim a supremacia do Estado sobre a sociedade. Essa concepção, no entanto, foi superada com o advento do Estado Constitucional de Direito, que proclama a sujeição dos poderes constituídos ao Direito e a imposição da defesa dos direitos fundamentais individuais e sociais ao poder político.
- O Estado Constitucional de Direito, consolidado na segunda metade do século XX, inverteu essa supremacia, instituindo a supremacia da Constituição e a inviolabilidade dos direitos fundamentais pelos poderes constituídos. A nossa Constituição proclama a supremacia dos direitos fundamentais, impondo ao Estado por ela instituído a missão de assegurar o seu efetivo exercício. A imperatividade da missão de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais é expressa pela inviolabilidade dos direitos individuais e sustentado pelo postulado da igualdade na edição e na aplicação da lei, expressos no artigo 5º da Constituição. Tal postulado impede a geração das exceções pontuais.
- Canotilho e Vital Moreira dizem que na concepção tradicional, agora superada, a Constituição era apenas o estatuto de organização do Estado, que estabelecia limites ao seu poder para preservar uma esfera de autonomia para os indivíduos, com positivação da chamada liberdade frente ao Estado. Alheia à ordem social, a Constituição do Estado liberal não podia impor-lhe tarefas em favor dos cidadãos. Na nova concepção, a Constituição é que institui o Estado e submete ao Direito os poderes constituídos, passando a ser também a lei fundamental da sociedade. Ela traz “um caderno de encargos do Estado, das suas tarefas e obrigações no sentido de satisfazer as necessidades econômicas, sociais e culturais dos cidadãos e dos grupos sociais.”[13]
- Ao mesmo tempo, a Constituição se arma para resistir às investidas e vencer a resistência à efetivação dos direitos por ela consagrados. A sua rigidez é respaldada pelo sistema de controle de constitucionalidade, assegurando a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, que ficou submetido, não só ao regime de competência e aos procedimentos prescritos pelo estatuto supremo, como também às suas determinações substantivas, ficando o legislador comprometido com a observância do conteúdo material das normas superiores e a agir no mesmo sentido.
- Com o crescimento das correntes políticas identificadas com a doutrina do liberalismo econômico, e o avanço mais recente da doutrina do ultraliberalismo, vêm sendo pautadas reformas constitucionais em diversos países, com o objetivo de eliminar garantias institucionais, para reduzir a efetividade dos direitos fundamentais sociais e individuais, que foram positivados extensamente nas Constituições do segundo pós-guerra dos países democráticos, centrais e periféricos. As maiorias eventuais instaladas no governo e que hegemonizam o Congresso Nacional invocam habitualmente a existência de uma crise para impor a violação dos direitos instituído as exceções. Convém observar que essa crise foi gerada e agravada pelas políticas de ajuste econômico, que levam a uma espiral recessiva.
- Resta verificar se a adoção, pelos poderes constituídos, de um regime de exceção no pagamento de precatórios habilitados contra a União, estaria abrangida pelo denominado poder de emenda, exaltado pela doutrina liberal um poder constituinte derivado, equivalente ao poder constituinte originário, de amplitude ilimitada, diferenciados do originário apenas formalmente, por serem dele derivados. Nesse cotejo, vale observar que as Constituições contemporâneas são aparelhadas para resistir ao avanço demolidor dos chamados “fatores reais de poder”, identificados no século XIX por Ferdinand Lassale.
- A doutrina reflete e fortalece essa resistência, identificando além da abrangência dos limites implícitos, limitações materiais implícitas ao dito poder de emenda. Sepúlveda Pertence diz que o STF já havia reconhecido “a existência de limitações formais e materiais implícitas ao poder de reforma constitucional”. Para ele, “a própria denominação de poder constituinte derivado visa encaminhar a fuga das suas limitações intrínsecas ou explicitas, e acresce que “na verdade, o que se tem é uma função constituinte entregue a um poder constituído, portanto limitável pela Constituição que o institui”.[14]
- A proeminência reconhecida à Constituição implicava em elevar a manifestação da soberania popular no momento constituinte a um patamar superior ao das manifestações subsequentes da soberania popular, na vida cotidiana da democracia parlamentar, através dos poderes constituídos. Luigi Ferrajoli sustenta que os direitos fundamentais estabelecidos por uma Constituição rígida impõem, queiram ou não, limites e vínculos substanciais à democracia política”[15].
- A doutrina que busca equiparar os poderes constituídos ao poder constituinte, para interpretar restritivamente os limites explícitos impostos ao dito poder de emenda pela Constituição, soa como uma ideologia, propagada uma concepção liberal do Estado e do Direito.
IV – OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS QUE LIMITAM O PODER DE EMENDA.
- Cabe então encontrar os sistemas de valores e princípios fundamentais da nossa Constituição que, estando no seu cerne, lhe conferem identidade e atuam como “pressupostos legitimadores”, valendo assim como limites materiais de revisão, tanto em si mesmos, como em várias das suas dimensões mais eminentes. Constituem eles o fundamento da Constituição, pois modelam o ordenamento constitucional e todo o ordenamento jurídico.
- No Preâmbulo da Constituição brasileira se encontram presentes os valores que orientaram sua elaboração. Já no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – se inscrevem os princípios deles decorrentes, dotados de força obrigatória, geradores de direitos e garantias institucionais, que modelam e subordinam os poderes constituídos ao Direito. A doutrina reconhece nas normas de direitos fundamentais – positivadas nas Constituições democráticas atuais – uma dupla função no Estado Constitucional de Direito: são geradoras de direitos subjetivos e, ao mesmo tempo, são princípios objetivos do ordenamento: garantem não só direitos subjetivos dos indivíduos mas também princípios objetivos básicos para o ordenamento constitucional democrático e para o Estado de Direito.
- Conforme o Preâmbulo, a Assembleia Constituinte instituiu no Brasil um Estado Democrático de Direito, com a missão primeira de assegurar o exercício dos direitos fundamentais sociais e individuais, bem como de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Os valores maiores são a garantia do exercício dos direitos fundamentais, traduzida no princípio da inviolabilidade dos direitos, e a garantia de eles são iguais para todos, guarnecidos pelo postulado da igualdade perante a lei.
- Ao instituir um Estado Democrático de Direito, a Assembleia Constituinte busca realizar a utopia da autonomia coletiva da comunidade, mediação necessária para concretizar o ideal da autonomia individual de todos os seus membros, que é conformada pelos direitos individuais fundamentais e tem suporte dos direitos sociais.
- No seu artigo 5º, na abertura do seu Título II – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” – a Constituição consagra os direitos fundamentais ao abrigo do princípio da igualdade perante a lei, anunciando a universalidade desses direitos, que são ditos invioláveis.
- Em nossa concepção, o arrolamento dos direitos fundamentais na Carta de 88 é precedido, não gratuitamente, da afirmação do princípio da igualdade formal e do princípio da inviolabilidade dos direitos. Na verdade, aquele elenco de direitos fundamentais é dependente. Eles só são realizáveis, mesmo em parte, se estiverem cercados pelo princípio da igualdade formal e também protegidos pelo dogma da inviolabilidade.
- O princípio da igualdade perante a lei tem origem na ideia disseminada na França oitocentista pelo Iluminismo, de que a lei devia ser a mesma para todos, eis que concebida em oposição a desigualdade dominante no Ancien Régime. O postulado da igualdade perante a lei, encontra seu fundamento no artigo 1º da Declaração de 1789, que indica a universalização dos direitos: “Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos”.
- Conforme demonstrado na obra “Era dos Direitos”, Norberto Bobbio localiza o momento fundante da democracia moderna no advento dos direitos humanos, protegidos pelo postulado da igualdade. A mesma Declaração de 1789 dizia que o fundamento da Constituição é a defesa dos direitos fundamentais, proclamando no seu artigo 2º que: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”.
- Vale dizer, a instituição do Estado pela sociedade – a “associação política maior” – tem seu fundamento na defesa dos direitos fundamentais. E o postulado da inviolabilidade dos direitos fundamentais limita os poderes constituídos, seja restringindo a competência para a edição de leis tendentes a abolí-los, ou para esvaziar ou obstruir o seu exercício, seja na aplicação das leis que os regulam, escorada na prevalência de outros bens jurídicos, sobre os demais bens jurídicos eles têm precedência assegurada, ainda que prestigiados. Por outro lado, esta inviolabilidade se expressa na imputação aos poderes constituídos da obrigação de atuar visando viabilizar o efetivo exercício destes direitos, por meio de intervenções normativas e administrativas.
- O princípio fundamental da igualdade perante a lei tem, como vimos, dupla determinação: impõe a igualdade na edição da lei e também a igualdade na aplicação da lei. Além de ser dirigido ao legislador – para que ele não diferencie os iguais e para que trate desigualmente os desiguais – se dirige aos aplicadores da lei, abrangendo todos os poderes públicos. Em especial, impede o legislador de gerar desigualdade na aplicação da lei, instituindo discriminações arbitrárias no acesso à justiça, ou privando-lhes do devido processo legal, com entrega de um processo de exceção, desprovido de efetividade.
- O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 4357 e 4425, em que declarou a inconstitucionalidade de parte da Emenda Constitucional 62/2009 – que instituiu o novo regime especial de pagamento de precatórios, consistente no parcelamento da dívida por 15 anos, combinado com um sistema de pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de leilões ou em acordos diretos com credores – já decidiu nesse sentido. Na sessão de 14.03.2013, a maioria dos ministros acompanhou o relator, ministro Ayres Britto, e declarou inconstitucional a norma que introduziu o artigo 97 do ADCT, instituindo o referido regime de pagamento, por afrontar cláusulas pétreas, como o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXV):
INCONSTITUCIONALIDADE DA SISTEMÁTICA DE COMPENSAÇÃO DE DÉBITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS EM PROVEITO EXCLUSIVO DA FAZENDA PÚBLICA. EMBARAÇO À EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO (CF, ART. 5º, XXXV), DESRESPEITO À COISA JULGADA MATERIAL (CF, ART. 5º XXXVI), OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES (CF, ART. 2º) E ULTRAJE À ISONOMIA ENTRE O ESTADO E O PARTICULAR (CF, ART. 1º, CAPUT, C/C ART. 5º, CAPUT). IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DO ÍNDICE DE REMUNERAÇÃO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO CRITÉRIO DE CORREÇÃO MONETÁRIA. VIOLAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE (CF, ART. 5º, XXII). INADEQUAÇÃO MANIFESTA ENTRE MEIOS E FINS. INCONSTITUCIONALIDADE DA UTILIZAÇÃO DO RENDIMENTO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO ÍNDICE DEFINIDOR DOS JUROS MORATÓRIOS DOS CRÉDITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS, QUANDO ORIUNDOS DE RELAÇÕES JURÍDICO-TRIBUTÁRIAS. DISCRIMINAÇÃO ARBITRÁRIA E VIOLAÇÃO À ISONOMIA ENTRE DEVEDOR PÚBLICO E DEVEDOR PRIVADO (CF, ART. 5º, CAPUT). INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO. OFENSA À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE DIREITO (CF, ART. 1º, CAPUT), AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES (CF, ART. 2º), AO POSTULADO DA ISONOMIA (CF, ART. 5º, CAPUT), À GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL (CF, ART. 5º, XXXV) E AO DIREITO ADQUIRIDO E À COISA JULGADA (CF, ART. 5º, XXXVI). PEDIDO JULGADO PROCEDENTE EM PARTE. (…)
- A compensação dos débitos da Fazenda Pública inscritos em precatórios, previsto nos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição Federal, incluídos pela EC nº 62/09, embaraça a efetividade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), desrespeita a coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI), vulnera a Separação dos Poderes (CF, art. 2º) e ofende a isonomia entre o Poder Público e o particular (CF, art. 5º, caput), cânone essencial do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput). (…)
- O regime “especial” de pagamento de precatórios para Estados e Municípios criado pela EC nº 62/09, ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).
- Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente em parte.”
- Sobre os limites ao poder de emenda constitucional, cabe referir o voto lapidar da Ministra Rosa Weber nesse mesmo julgamento paradigmático:
“Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse poder de realizar o Direito com plena eficácia vinculativa em lides já solucionadas por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade da coisa julgada?
Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa.
Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno.
Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, a meu juízo, a lei a que o constituinte originário veda prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional.
E interpreto a dicção do art. 60, § 4º, da CF – não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir, na fração de interesse, os direitos e garantias individuais –, no sentido de que também se encontram vedadas restrições equivalentes a uma efetiva supressão.
Ora, o acesso à Justiça, a efetividade da jurisdição, a efetividade do processo como instrumento de tutela de direitos, a irretroatividade da lei frente ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada estão contemplados em nossa Constituição como garantias individuais, garantias fundamentais, e nessa medida foram erigidos à condição de cláusulas pétreas no texto constitucional. Agrego, quanto ao instituto da coisa julgada – fazendo coro ao Min Celso de Melo em um de seus sempre brilhantes votos nesta Corte -, que ela, a coisa julgada, nas palavras de sua Excelência, representa valor de essencial importância na concepção axiológica que se encerra em nosso sistema constitucional, na preservação da segurança jurídica, enquanto propicia a estabilidade das relações sociais e a superação dos conflitos submetidos ao Judiciário.
Não há, portanto, como admitir qualquer flexibilização a respeito, máxime em instância administrativa, instância esta, administrativa, em que, permito-me relembrar, tramita o precatório.
Todos esses postulados, com a devida vênia, foram atropelados pela Emenda Constitucional 62, em vários de seus ditames, como ontem já se decidiu, e, a meu juízo, da mesma inconstitucionalidade material se ressente o parágrafo quinze do artigo 100 da CF, com a redação da Emenda 62. Subscrevo na íntegra os fundamentos do eminente Relator, Ministro Ayres Britto, quando conclui que os dois modelos de regime especial para pagamento de precatórios instituídos no ADCT, art. 97, afrontam a ideia central de Estado Democrático de Direito, violam as garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, 5º, XXXV, do devido processo legal, 5º, LIV, e da razoável duração do processo, 5º, LXXVIII, e afrontam a autoridade das decisões judiciais, ao prolongar por mais de quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado, já prorrogado por um decênio pela Emenda Constitucional 30, de 2000.”
V – CONCLUSÃO.
- Tendo o princípio da igualdade perante a lei e o princípio da inviolabilidade dos direitos como autênticos estatutos de fundamentos da Constituição – o que já fora anunciado, como vimos, no surgimento da democracia moderna – assume maior relevância a constatação, já adiantada, de que a alteração constitucional estabelecida pelas Emendas Constitucionais nº 113/2021 e 114/2021 afrontam esses postulados fundamentais, porquanto:
I – Instituem um Novo Sistema de Pagamento de Precatórios altamente discriminatório para o universo de credores da União titulares de valores legitimados pela jurisdição. Tais créditos são apropriados arbitrariamente, tendo a sua devolução submetida a uma postergação ilimitada, com a imposição de um teto anual de gastos de precatórios, enormemente rebaixado.
II – Impõe uma sucessão de empréstimos compulsórios dissimulados, ano após ano, que irá atingir centenas de milhares de credores da União, invocando situação de crise. Trata-se de um sacrifício perverso, ignorando que, justamente para situações de crise, a Constituição autoriza a União a impor empréstimo compulsório sobre os contribuintes. Havendo a observância dos requisitos que ela exige para sua adoção (art. 150, II), a solução adotada pelas emendas constitucionais institui um verdadeiro regime de exceção, que incide seletivamente sobre credores legitimados por decisões judiciais definitivas.
III- Promove brutal desigualdade na aplicação da lei, que além de bloquear direitos existentes, inova o próprio processo destinado à tutela de direitos futuros dos sujeitos que continuamente têm créditos contra a União, direitos que são habitualmente resistidos por longos anos. As emendas bloqueiam o acesso dos destinatários ao devido processo legal, assegurado a todos os cidadãos pelo inciso LIV, do art.º. 5º da Constituição da República, para a defesa dos seus bens, onde se incluem os seus direitos subjetivos, impondo-lhes um processo despido de efetividade, um verdadeiro processo de exceção, enquanto privilegia credores titulares de frações da dívida pública, deixados fora do teto de gastos.
IV – Subtrai de dezenas de milhares de cidadãos da base da sociedade o direito a uma tutela jurisdicional efetiva – principal garantia dos seus direitos subjetivos substantivos – ao mesmo tempo em que ela é preservada integralmente para todos os demais cidadãos (art. 5º, XXXV).
V – Expõe os sujeitos discriminados a ações judiciais de todos os seus fornecedores, desde os que lhe vendem alimentos e bens duráveis, até os bancos que lhes concedem empréstimos consignados e financiamentos imobiliários, sempre instrumentalizados com ações judiciais de coercividade reforçada.
VI – O processo de exceção para os desfavorecidos é combinado com o favorecimento dos privilegiados social e economicamente. Essa profunda desigualdade instituída na aplicação da lei concorre para acentuar as desigualdades sociais, que a República tem o objetivo de reduzir (Art. 3º, inciso III, da Constituição da República).
VII – A imposição do Novo Regime de Pagamento de Precatórios, por meio das Emendas 113 e 114/2021, excede a competência dos poderes constituídos para emendar a Constituição, violando diretamente o direito de propriedade e excedendo limites materiais implícitos.
VIII – A alteração drástica do sistema de pagamento de precatórios ofende os princípios fundamentais da segurança jurídica, do devido processo legal e do acesso à Justiça, todos contemplados de modo indelével pelo texto constitucional.
IX – As emendas constitucionais em questão, geradas pela colusão dos poderes Executivo e Legislativo, bloqueando o cumprimento de decisões do Poder Judiciário, ofendem os postulados da separação e da independência de poderes, submetendo o órgão de defesa e efetividade do Direito à vontade manifesta dos outros poderes, concorrendo assim para seu desprestígio.
Porto Alegre e Brasília, 6 de janeiro de 2022.
Rogério Viola Coelho
OAB/RS 4.655
Tarso Fernando Herz Genro
OAB/RS 5.627
Mauro de Azevedo Menezes
OAB/DF 19.241
[1]Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 107-A e 118: “Art. 107-A. Até o fim de 2026, fica estabelecido, para cada exercício financeiro, limite para alocação na proposta orçamentária das despesas com pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal, equivalente ao valor da despesa paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos, corrigido na forma do § 1º do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, devendo o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal, a ser calculado da seguinte forma: I – no exercício de 2022, o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o limite estabelecido no caput deste artigo deverá ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal; II – no exercício de 2023, pela diferença entre o total de precatórios expedidos entre 2 de julho de 2021 e 2 de abril de 2022 e o limite de que trata o caput deste artigo válido para o exercício de 2023; e III – nos exercícios de 2024 a 2026, pela diferença entre o total de precatórios expedidos entre 3 de abril de dois anos anteriores e 2 de abril do ano anterior ao exercício e o limite de que trata o caput deste artigo válido para o mesmo exercício. § 1º O limite para o pagamento de precatórios corresponderá, em cada exercício, ao limite previsto no caput deste artigo, reduzido da projeção para a despesa com o pagamento de requisições de pequeno valor para o mesmo exercício, que terão prioridade no pagamento. § 2º Os precatórios que não forem pagos em razão do previsto neste artigo terão prioridade para pagamento em exercícios seguintes, observada a ordem cronológica e o disposto no § 8º deste artigo. § 3º É facultado ao credor de precatório que não tenha sido pago em razão do disposto neste artigo, além das hipóteses previstas no § 11 do art. 100 da Constituição Federal e sem prejuízo dos procedimentos previstos nos §§ 9º e 21 do referido artigo, optar pelo recebimento, mediante acordos diretos perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Pagamento de Condenações Judiciais contra a Fazenda Pública Federal, em parcela única, até o final do exercício seguinte, com renúncia de 40% (quarenta por cento) do valor desse crédito. § 4º O Conselho Nacional de Justiça regulamentará a atuação dos Presidentes dos Tribunais competentes para o cumprimento deste artigo. § 5º Não se incluem no limite estabelecido neste artigo as despesas para fins de cumprimento do disposto nos §§ 11, 20 e 21 do art. 100 da Constituição Federal e no § 3º deste artigo, bem como a atualização monetária dos precatórios inscritos no exercício. § 6º Não se incluem nos limites estabelecidos no art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o previsto nos §§ 11, 20 e 21 do art. 100 da Constituição Federal e no § 3º deste artigo. § 7º Na situação prevista no § 3º deste artigo, para os precatórios não incluídos na proposta orçamentária de 2022, os valores necessários à sua quitação serão providenciados pela abertura de créditos adicionais durante o exercício de 2022. § 8º Os pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal serão realizados na seguinte ordem: I – obrigações definidas em lei como de pequeno valor, previstas no § 3º do art. 100 da Constituição Federal; II – precatórios de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham no mínimo 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; III – demais precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; IV – demais precatórios de natureza alimentícia além do valor previsto no inciso III deste parágrafo; V – demais precatórios.” “Art. 118. Os limites, as condições, as normas de acesso e os demais requisitos para o atendimento do disposto no parágrafo único do art. 6º e no inciso VI do caput do art. 203 da Constituição Federal serão determinados, na forma da lei e respectivo regulamento, até 31 de dezembro de 2022, dispensada, exclusivamente no exercício de 2022, a observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa no referido exercício.”
[2] Art. 107-A (…) § 2º Os precatórios que não forem pagos em razão do previsto neste artigo terão prioridade para pagamento em exercícios seguintes, observada a ordem cronológica e o disposto no § 8º deste artigo. (…) § 8º Os pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal serão realizados na seguinte ordem: I – Obrigações definidas em lei como de pequeno valor, previstas no § 3º do art. 100 da Constituição Federal; II – Precatórios de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham no mínimo 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; III – demais precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; IV – demais precatórios de natureza alimentícia além do valor previsto no inciso III deste parágrafo; V – demais precatórios.”
[3] § 3º É facultado ao credor de precatório que não tenha sido pago em razão do disposto neste artigo, além das hipóteses previstas no § 11 do art. 100 da Constituição Federal e sem prejuízo dos procedimentos previstos nos §§ 9º e 21 do referido artigo, optar pelo recebimento, mediante acordos diretos perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Pagamento de Condenações Judiciais contra a Fazenda Pública Federal, em parcela única, até o final do exercício seguinte, com renúncia de 40% (quarenta por cento) do valor desse crédito.
[4] § 4º O Conselho Nacional de Justiça regulamentará a atuação dos Presidentes dos Tribunais competentes para o cumprimento deste artigo. § 5º Não se incluem no limite estabelecido neste artigo as despesas para fins de cumprimento do disposto nos §§ 11, 20 e 21 do art. 100 da Constituição Federal e no § 3º deste artigo, bem como a atualização monetária dos precatórios inscritos no exercício. § 6º Não se incluem nos limites estabelecidos no art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o previsto nos §§ 11, 20 e 21 do art. 100 da Constituição Federal e no § 3º deste artigo. § 7º Na situação prevista no § 3º deste artigo, para os precatórios não incluídos na proposta orçamentária de 2022, os valores necessários à sua quitação serão providenciados pela abertura de créditos adicionais durante o exercício de 2022.
[5] § 11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com autoaplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios, ou adquiridos de terceiros, reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para: I – quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente; II – compra de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente disponibilizados para venda; III – pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial promovidas pelo mesmo ente; IV – aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para venda, do respectivo ente federativo; ou V – compra de direitos, disponibilizados para cessão, do respectivo ente federativo, inclusive, no caso da União, da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo.
[6] § 14. A cessão de precatórios, observado o disposto no § 9º deste artigo, somente produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao Tribunal de origem e ao ente federativo devedor.
[7] Art. 3º Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – Selic, acumulado mensalmente.
[8] ADI 4.357 (Redator para o acórdão Min. Luiz Fux) – “a inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período)”.
[9] Art. 5º (…) XXII – é garantido o direito de propriedade;
[10] “Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos:
[11] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
[12] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
[13] CANOTILHO, J.J. Gomes. MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 1991.
[14] SEPÚLVEDA PERTENCE, Jose Paulo. O controle de constitucionalidade das emendas constitucionais pelo Supremo Tibunal Federal: Crônica de Jurisprudência. In: Revista Direito do Estado, Tomo 1. Editora Max Limonad.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La Ley del más Débil. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001.