Hobsbawm disse algo sobre a cultura do nosso tempo que serve, sem dúvida, para a abordagem da política e do direito: “a economia técnico-industrializada banhou as nossas novas vidas em experiências de informação e produção cultural –de sons, imagens, palavras, memórias símbolos– onipresentes, constantes e universais que carecem por completo de precedentes históricos”.[1] Nesta nova situação histórica, pensa Hobsbawm, “a verdade, a beleza e a catarse” mudaram o rumo da civilização de uma forma radicalmente nova, o que nos enseja a repensar –também de forma inovadora– todos os impulsos criativos da subjetividade humana no plano político, a partir da experiência da social democracia, que vai de Marx e Engels à Kautsky e Berstein. Neste sentido histórico amplo é que nos reportamos à expressão “social democrata”, no presente texto. [2]
O paradigma cultural e político social democrata da República de Weimar percorreu uma extraordinária aceitação, influenciando –em maior ou menor grau– as experiências políticas civilizatórias do capitalismo industrial, a partir do início do século passado. Capitalismo e democracia, em determinados momentos da história, tornaram-se pares ajustados e isolaram, frequentemente, à direita, as barbáries fascistas e nazistas e, a sua esquerda, as experiências socialistas soviéticas, com as quais a democracia liberal competiu nos primórdios da Revolução Russa. Nas experiências de dominação pacífica e consensual do capital sobre o trabalho, neste período, no qual ressaltava o trabalho operário (na rotina da fábrica moderna), a democracia parecia estabilizar-se e ajustar –em torno dela– um bom modo de vida ilusório, sem grandes sobressaltos.
A ideologia social democrata que venceu, na Europa Ocidental, a disputa com o socialismo revolucionário, conformou um “modo de vida” e uma associação política entre classes, que detinham, pelo menos, duas características importantes: a) era uma transação pela paz social, com proteção do Estado, baseada na garantia de um sistema de direitos, com repercussões materiais positivas na vida de grande parte dos assalariados públicos e privados; e b) era também um pacto com cláusulas de legitimação do domínio democrático, do capital sobre o trabalho, que se fazia capaz de proteger as classes empresariais das ameaças da revolução socialista, que poderiam expandir-se a partir da experiência soviética.
A social democracia, portanto, aceita esta hipótese, foi duplamente, protecionista – do trabalho e do capital– e a transição neoliberal, que ocorre hoje, com assentimento majoritário na sociedade (manipulado ou não), exclui a primeira cláusula de proteção (do trabalho) e mantém, plenamente, a segunda:(do capital): a social democracia –portanto- tal qual se apresenta no seu período de esvaziamento programático, atualmente, é o conduto mais eficiente da ideologia liberal.
Na crise atual da democracia representativa e do modelo industrial social democrata, todavia, a vida instabiliza-se. A política perde a sua capacidade de ajustar as hegemonias ao modo de vida e o mundo do trabalho, fragmentado e desestruturado -com as novas tecnologias informacionais- começa a perder a sua identidade coletiva. Neste contexto, agora, ocorre uma inversão política problemática, com a resistência à demolição da legislação protecionista do trabalho, pois, do conteúdo e da forma desta resistência, parece emergir uma ideologia de que da sua espontaneidade sem conceito, possa surgir –por si só– um novo contrato social também de caráter democrático.
Não se discute –por óbvio– se a resistência é válida e necessária, seja aquela mais espontânea ou mais projetada, estrategicamente. O que se questiona é qual a precedência necessária para redesenhar o novo contrato democrático e social, que precisa de conceitos novos, ajustados aos novos tempos das novas tecnologias, para construir formas políticas e jurídicas atualizadas, para a composição de um novo sistema de proteção social, cujo desenho far-se-á –necessariamente- em conjunto com a “resistência”, não depois dela. A rotina e a espontaneidade não só não geram novos conceitos, mas também sufocam a crítica dos conceitos do passado.
Richard Sennett no seu “A corrosão do caráter”, discutindo sobre “rotina” e “espontaneidade” na produção do capitalismo maduro, escreveu que estávamos “numa linha divisória na questão da rotina”. Para Sennet, chegava a época da “nova linguagem da flexibilidade, dizendo a seguir que a rotina esta(ria) morrendo nos setores (mais) dinâmicos da economia”. Antes, na mesma ordem de raciocínio, dissera: “imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ação a curto prazo, despida de rotinas sustentáveis, vida sem hábitos, é na verdade imaginar uma existência irracional”. Ao questionar se a flexibilidade “remediaria” o mal humano que pretendia atacar, agregou: “Mesmo que a rotina tenha um efeito pacificador sobre o caráter(…), como vai a flexibilidade fazer um ser humano mais engajado?” [3]
A “irracionalidade” pensada por Sennett, todavia, aparece como uma nova racionalidade, também possível na lógica do capital. A pergunta mais importante passaria a ser, no plano do direito do (ao) trabalho (no novo contexto econômico-produtivo) uma consideração lembrada por Castells[4], “que (se) a força e a estabilidade das instituições dependem da sua vigência na mente das pessoas”, os meios infodigitais e as redes de relacionamentos, poderiam ser “mediações” eficazes, para um novo período de “progresso social”? Isso só seria possível dentro de um novo pacto social democrata? Para tentar responder à indagação é preciso levar em conta o alcance das “mediações”, como método e sistema.
Em qualquer método de análise as mediações são um instrumento do sistema escolhido pelo analista (que é ser político) “pelo qual o reinado da separação, de fragmentação da explosão dos códigos e da multiplicidade das disciplinas, não passa de uma “realidade da aparência”. Ela existe, como diria Hegel, não tanto, em si mesma, mas para nós: como base lógica e lei fundamental de nossa vida diária, na experiência existencial no capitalismo tardio”.[5] O que se pode afirmar, em princípio – sobre razão e irracionalidade– é que as mediações dos vínculos sociais entre as classes, por exemplo, se complicaram muito a ponto de “que um encontro com Henry Ford, no início do século passado, ou uma greve na sua linha de produção, teria mais resultados para o futuro do trabalhador do que se pudéssemos, hoje, encontrar um Jeff Bezos”[6], o dono da Amazon. Isso não diz tudo, mas diz muito.
O período da “reengenharia”, do “just in time”, da radical separação entre concepção e realização, dominava as preocupações nos “negócios” –mesmo antes de Sennet– pois a mutação que iniciara na década de 70 se aproximava do seu momento de revolução. É o tempo em que as grandes mudanças no sistema industrial do capitalismo clássico já esboçavam os novos caminhos (da informática à infodigitalidade) que, se ainda não permitiam prever com clareza o nível de dispensabilidade do trabalho vivo (onde estava situado um dos sujeitos do acordo social democrata), já indicavam uma nova conformação da ordem mundial, amparada num outro sistema de poder. Lembremos que a revolução cultural na China Popular terminara na década 70 e Deng Xiaoping iria logo dizer que “o que importava não era a cor dos gatos, mas que eles caçassem os ratos”, o que significava produzir mais –também na experiência socialista/comunista– mais rápido e mais barato. Esta nova teleologia do modelo chinês mostrava que o pragmatismo –mesmo projeto comunista–substituía a racionalidade da ideologia humanista.
Os gestores do capital e seus cientistas, no período em que Sennett escreveu seu repto, já estavam unificando, no espaço global, tanto as novas formas de produzir com menos custos e menos dependência da força do trabalho humano, como também já se preocupavam, politicamente, com um regime político de aceitação, que provesse novas formas de organizar a produção, por fora do contexto social democrata. As novas “rotinas” tecnológicas, que se avizinhavam, já demarcavam formas novas de exploração do trabalho e consolidavam linhas de cooperação inovadoras, entre empresas, mesmo ainda no sistema industrial da robótica e automação. E a inteligência política burguesa –assim– também pensava em como moldar novas instituições políticas do Estado, para uma nova fase da dominação que não abandonasse formalmente a “via democrática”.
Duas décadas depois de Sennett do clássico “A corrosão do caráter” firmar-se-ia um panorama mais complexo do que o previsto nas suas elaborações maduras. As mudanças estruturais na forma pela qual o trabalho seria realizado no mundo virtual, com a substituição dos modelos econômicos de constituição e realização de negócios das empresas, bem como da forma de trabalhar e ser contratado (de onde, como e para que prestar serviços) “desenhariam um novo sistema global de poder” (…) “Em determinados momentos, até mesmo quem está(va) no comando ativo do serviço realizado e contratado (seria) figura digna de incertezas jurídicas.” (…) “A aposta virtual do negócio passava por outra estrada (infoestrada), acompanhada de uma lógica diferente. Uma ideia pode(ria) ter valor negocial muito maior”[7] e a rotina industrial, como era então conhecida, viraria pó.
A rotina da fábrica moderna, como era então conhecida, começava assim a se esvair e ser substituída, –como aponta Castells– por fluxos de ideias, comandos, sinais, “políticas” empresariais em redes incessantes de informação e comunicação, ao lado das quais o desenvolvimento industrial tradicional ainda persistia, mas já paralelo e integrado com outro mais dinâmico, com novas formas de exploração de trabalho vivo e novos padrões de acumulação. A “rotina” passa a ser outra, mais “individuada” e surpreendente e também mais fragmentada.
Estes novos processos não só diminuíram a necessidade do trabalho proletário direto na indústria, mas também induziram formas alternativas à organização geral do trabalho, impondo novos estatutos de controle técnico do processo produtivo, sobretudo a partir da sua concepção e pelo seu resultado, mais do que pela vista dos “olhos” do “master”. Corpos e mentes em movimento perpétuo, juntos ou separados no esforço da prestação desses serviços e ofertas do conhecimento, foram destacados da vida dos trabalhadores na fábrica e passaram a transitar –nas redes e nas ruas– das antigas metrópoles da era industrial.
Face a todas estas mutações surgiram novos problemas políticos e jurídicos, que ainda pendem de solução. Eles estão relacionados à questão de como resolver o novo domínio político do capital sobre o trabalho, para substituir os consensos do velho pacto social democrata. Esta necessidade já surgira, em outro nível, quando o “operário” universal da indústria, dotado de novos direitos (no período inicial do social democratismo) assumiu um outro estatuto social, quando atravessou os portões do seu emprego já também como trabalhador-cidadão. Este, embora ainda fosse mantido como sujeito-mercadoria ali já se elevava, igualmente, à condição de “sujeito-de-direitos-fundamentais”, para compor o pacto que se aperfeiçoou até os anos 70 do século passado. Iniciado em algum momento da história no início do século XX, agora ele precisaria mudar e se atualizar, se às partes interessasse estabilizar o contrato social democrata, sem descambar para o neoliberalismo.
Aquele trabalhador simbólico da fábrica moderna, que “atravessou os portões” carregando a sua condição de operário subordinado, adquiriu, na social democracia moderna, um estatuto já mais completo, coberto por novas Constituições democráticas, dentre as quais a nossa de 88. Nesta situação nova histórica é que surge, agora, uma nova situação estrutural, na qual o trabalhador que reduziu a sua condição de mercadoria no mercado de trabalho e tornou-se mais “humano” (cidadão civil com expectativas de ascensão) agregou, na sua condição de mercadoria que vai ao mercado, um novo status de cidadania política civil, com o Estado Social. Era a cidadania que no âmbito do Estado social democrata –ao contrário do que era buscado projeto socialista revolucionário– aceitava as diferenças de “status” materiais e as considerava legítimas, desde que não fossem demasiadamente diferenciadoras e sempre se legitimassem na esfera política.
Quando esta capacidade hegemônica conseguia legitimar sua ideologia, mesmo sujeita às manipulações da democracia de representação, ela produzia diferenças aceitas, abrigadas nos privilégios de um sistema legal que continha expectativas formais de igualdade. Era a aceitação baseada no liberalismo político democrático, alimentando um imaginário que concebia que as desigualdades que não ferem, explicitamente, a dignidade humana, a proteção social pelo direito e a igualdade formal perante as leis, produzem a melhor “paz social”.
Neste estatuto novo (agora já insuportável na era do “rentismo”) o trabalhador moderno formou sua subjetividade, paralelamente àquela que vinha diretamente da rotina da automação da fábrica moderna. Esta nova subjetividade combina a condição de sujeito do contrato social democrata estável (do cidadão trabalhador) com os direitos fundamentais. Esta combinação já se dá, hoje, nos limites do Estado Social em decadência: um trabalhador protegido, juridicamente pelos direitos fundamentais, mas que necessita tornar-se “empreendedor de si mesmo”, na busca da sobrevivência nas malhas do mercado.
O velho pacto social democrata, que já se tornava difícil pela fraqueza dos sujeitos negociadores é então, substituído pela ilusória transição molecular para o empreendedorismo industrial –para assumir uma suposta condição burguesa– já bloqueada pelos novos sistemas de “uberização”, autonomia contratual, com baixa valorização dos serviços dispersos nas redes. Mais de dois séculos depois da Revolução Francesa, concorrendo com a visão de Estado Social na sua situação do pós-guerra, Friedman fazia forte impugnação do Estado Social (montado pelas promessas de 1789) que se acenara como universalizador da cidadania.
Na situação de dissolução do Estado Social na “ordem concreta” do ultraliberalismo, todavia, a ambição da revolução, como consciência adjudicada “de fora” da consciência imediata, passou a ser substituída pela adjudicação do direito ao bem-estar imediato, mais centrado na vida cotidiana, fora da vida presumida na narrativa da revolução.
Friedman defende –quanto àquele Estado– diminuir a prestação pública que subvertia os princípios do mercado, postulando a redução dos seus servidores permanentes, mormente nos serviços da área da saúde e educação, fundamentais para a transição social “molecular” (Gramsci) “de baixo para cima”, na escala social. Segundo ele, estas prestações seriam obstáculos para o bom funcionamento do mercado e para a afirmação integral da força do trabalho dos humanos, como mercadorias no mercado: “o Estado não deveria gastar com caras instalações e pagamento de salários a servidores públicos permanentes, para oferecer os serviços públicos essenciais, como saúde e educação, (para o operário que “passou” nos portões) mas deveria criar um programa de cupons (vouchers) que dariam a possibilidade dos interessados receberem a prestação desejada em um mecanismo concorrencial de mercado, muito mais eficiente”.[8]
Também a disputa pela hegemonia global, quando predominavam forças econômicas e militares que estão na base de cada poder estatal, não mais se realiza somente pela materialidade da força militar e pelos controles das fontes de energia, das águas e das terras, obtidas partir da força militar de cada estado-nação. A capacidade de exploração do conhecimento, de uso da inteligência e das novas tecnologias é diferencial que adquiriu –no último terço do século passado– extrema relevância. Tanto para legitimar manipulatoriamente os poderes internos a cada país, como para colonizar, ideologicamente, corações e mentes na sociedade civil, pelo controle e seletividade de informação.
O Estado de Direito, que construiu sua legitimidade pelo cumprimento das suas funções públicas, no Estado Social de Direito tem seu suporte essencial no elenco dos direitos fundamentais. E esta erosão de legitimidade é visível, na esteira de Friedman: “se pode apontar – no Brasil– o desprezo contido na lei 13.467/17[9] que reorganiza o mundo do trabalho, aprovada depois de uma violenta lavagem cerebral pelos meios de comunicação privados. São leis (que “reformaram” o Direito do trabalho)”, e (desprezam) o Direito enquanto ciência: aqui vale a observação de que seu conteúdo normativo, pelas inúmeras atecnias, antinomias, impropriedades, incoerência lógica e atentados aos princípios do Direito do Trabalho e Convenções Internacionais ratificadas no Brasil, (que) revelam um profundo desprezo pelo direito do trabalho…”[10]. Este desprezo não é gratuito e sua origem ideológica é o liberalismo econômico radical.
Quando a legitimidade do Estado capitalista, na sua dimensão social, poderia ensejar um novo patamar de integração social através de novos estatutos de proteção, que fundiriam a proteção do trabalho com a proteção dos direitos fundamentais, a força conservadora ultraliberal passou a orientar reformas que vem anular os padrões civilizatórios, da forma geral social democrata. Nesta pretensão de sociedade ultraliberal, como se vê, o grau de desigualdade perseguido é induzido fortemente “por fora” dos elementos de coerção econômica concreta. Eles são provenientes, principalmente, de um pacto político ideológico sustentado em relações reais de poder, promovido entre o Estado e a maioria da comunidade política, segundo condições herdadas pelo consentimento dos próprios dominados, para perverter completamente a velha social democracia.
Tanto os direitos da cidadania burguesa clássica como os direitos trabalhistas que agora desaparecem, nos novos fluxos do capitalismo rentista das novas TICs, formaram-se através de duras e às vezes sangrentas lutas contra os privilégios feudais e contra a dominação autoritária no Estado absolutista. A polêmica de Giddens e Marshall sobre a emergência dos direitos da cidadania ilustra isso de maneira adequada: “Na análise de Giddens, Marshall subestimou o fato de que os direitos cidadãos foram em grande medida conquistados por meio da luta” (1982, pág.171). Além disso, Giddens argumenta que Marshall subestimou o fato de que a balança do poder se inclinou em favor das classes subordinadas só em épocas de guerra, em especial durante as guerras mundiais.” [11]
Na totalidade atual deste processo, a ampliação da capacidade humana de produzir com cada vez menos custos e mais independência do esforço prático dos humanos nas linhas de produção, verifica-se uma mudança radical da rotina industrial moderna. O que deriva disso, porém não é a extinção da rotina, mas outro processo “rotineiro”, no qual as indeterminações dos fluxos de informação em redes horizontais e as interações verticalizadas do conhecimento, organizaram novos sistemas concretos de exploração do trabalho e controle ideológico da vida “hiper” dedicada ao mercado.
Norbert Elias diz que: “um Estado que conseguiu vencer em lutas eliminatórias anteriores dois ou três concorrentes mais ou menos da mesma força e logrou forçá-los a uma aliança ou a prestarem-lhe vassalagem, (neste Estado) as suas camadas dirigentes são, quase invariavelmente, arrebatadas pela ideia de que, para a sua segurança, é necessário ser mais forte do que qualquer outro Estado à sua volta”.[12] No atual quadro civilizatório, milênios depois das sociedades coletoras e “caçadoras” –depois da evolução técnica e do desenvolvimento do comércio e da agricultura nas cidades– a utilização das tecnologias modernas (que inclusive socializam, no Estado, a espionagem e o secretismo) se tornaram fortes instrumentos dos novos pactos reais de poder, já tão importantes como a promoção da indústria bélica e a preparação material da economia para a guerra .
O futuro utópico, então, chegou distópico. A política do capital financeiro global viabilizou pactos reais de poder que se apropriaram das tecnologias revolucionárias para colocá-la a seu serviço e sob seu controle. Embora (…) “um exame cuidadoso da evidência empírica permita questionar a veracidade do discurso sobre o desemprego tecnológico”, tal como está posto, não há dúvidas de que se trata de um discurso altamente funcional das elites de todo o mundo, porque o medo paralisa e debilita os reclamos dos trabalhadores (e o) acento na automação e na perda de empregos, distrai os trabalhadores de uma avaliação mais realista dos impactos potenciais do desenvolvimentos tecnológico”,[13] que permitiriam reduzir universalmente a jornada de trabalho e socializar o “direito ao trabalho”, como regra.
Como salientei em outra análise o surgimento de novas “classes” trabalhadoras, das novas formas de aquisição da força de trabalho pelo capital e das novas tecnologias, que antecedem a época do domínio do capital financeiro, impulsionaram uma tendência oposta ao previsto pelo “Manifesto Comunista. Não ocorreu uma crescente simplificação da sociedade de classes, bem como o proletariado não se concentrou em definitivo em grandes fábricas, contrariando as condições previstas no Manifesto.
Mais do que reinvenção dos sujeitos, com seus destinos traçados pela economia –para serem construtores da emancipação– é preciso saber agora localizá-los, num mundo em que a instantaneidade da política faz-se estratégia nos fluxos de dominação do capital financeiro e incidem, fluentemente, sobre o funcionamento do Estado.
A visão positivista-naturalista, de que o desenvolvimento das forças produtivas e a violência material, como parteira da história, seriam impulsos “fatais” que inclinariam o mundo para uma marcha inevitável em direção a uma sociedade igualitária sem Estado (não amparada pela força coercitiva de normas estatais) deu base à conhecida fórmula do “socialismo científico”, que muito contribuiu para a crise do sistema soviético, já que se ergueu – como ciência planificada– só com os contraditórios aceitos pelo Partido.
A apropriação cada vez mais concentrada nas classes dominantes, tanto do poder econômico gerado pelo desenvolvimento das forças produtivas, bem da capacidade de exercer a violência “virtual”, a partir do Estado, coloca por terra essa ideia. Ela, embora vitoriosa na União Soviética quando salvou a humanidade do nazi-fascismo perdeu, hoje, para as forças protofascistas desbravadoras e superadoras do que Marx denominou pré-história da humanidade, para um novo tipo de pré-história, onde a supressão do humano é convertida –na sua aliança com o ultraliberalismo– na afirmação total do mercado. A contraposição subjetiva, fundamentada e explícita, à ideologia do “mercado total” que substituiu a ideia fascista do “Estado total”, é o enunciado de uma nova ideia que articule o convívio da democracia política com os fundamentos da ideia socialista.
Consideradas estas consequências da história, nos seus termos distintos, eles podem nos aproximar da reflexão de Piketty, sem que seja necessário renunciar à ideia central do humanismo de Marx: “Sejamos claros: seria absurdo pretender dar respostas satisfatórias e convincentes e apresentar soluções que poderiam ser aplicadas de olhos fechados para questões tão complexas. (…) Toda a história dos regimes desigualitários mostra que, acima de tudo, as mobilizações sociais e políticas e as experiências concretas permitem mudanças na história. A história é produto das crises e nunca é escrita de maneira prevista nos livros.(…) Ignoro como serão as crises futuras e o modo como elas recorrerão aos repertórios de ideias existentes, para inventar novas trajetórias. Mas não tenho qualquer dúvida de que as ideologias continuarão a desempenhar papel central, para o bem e para o mal.” [14].
As “crises futuras”, como as chamaria Piketty, já são as crises do presente. Sua profundidade, maior ou menor, vai depender mais do que aquilo que os caminhos da política e do direito vão fazer da economia e menos do que esta (a economia) vai fazer espontaneamente da política. A ideia da emancipação, portanto -numa sociedade composta por iguais em direitos, num novo pacto social democrata- deverá aceitar diferenças sociais, desde que elas sejam conscientemente orientadas para serem decrescentes. Tal propósito implica num novo tipo de exercício do poder político, cuja natureza não foi resolvida nos debates social democratas do primeiro terço do Século passado. E este vazio é que nos legou a vitória do liberal-rentismo (aqui acordado com o protofascismo) em escala global, de onde se gestaram as reformas destrutivas do Estado Social, colocando a plenitude do mercado no lugar da democracia social e as utopias de direita de Hayek e Von Mises, no lugar tanto de Marx como de Bernstein.
[1] HOBSBAWM, Eric – Un tiempo de rupturas. Sociedad y cultura en el siglo XX. Prefácio. De la traducción, Cecilia Belza y Gonzalo Garcia. Barcelona: Crítica, 2013, p.13.
[2] L’ arbre social-démocrate. Actuel Marx 1887,nº 23, présentation, Presses universitaires de Frence. Paris: Edition Frech 1998.
[3]SENNETT, Richard. A corrosão do caráter consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução Marcos Santarrita. 5ª ed. Rio de janeiro:Record,2001 p.50-51.
[4] CASTELLS, Manuel. Ruptura: La crisis de la democracia liberal, ed. Alianza, Madrid, 2017, p.16.
[5]JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992, p. 36-37.
[6] DANÉRIS, Marcelo. cópia fornecida pelo autor, do texto em produção.“Desalento e Competição no mundo do trabalho: o leviatã brasileiro”.
[7]AGUIAR, Antonio. Carlos. Direito do Trabalho 2.0. Digital e Disruptivo. 1a ed. São Paulo: LTr, 2018.p36.
[8]BERCOVICI, Gilberto. A Administração Pública dos Cupons. portaldisparada.com.br. Disponível em:https://portaldisparada.com.br/politica-e-poder/administracao-publica-dos-cupons/#_ftn5. Acesso em: 07 de setembro 2020.
[9]BRASIL Senado Federal, Art. 1º A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com as seguintes alterações:…,. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/norma/17728053/publicacao/17728664.Acesso em:15 de setembro de 2020.
[10]D’Ambroso, Marcelo José Ferlin. Cinco minutos de Filosofia do Direito e a reforma trabalhista. Em D’Ambroso, M. J. F. (Coord.). Direito do Trabalho, Direito Penal do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e a reforma trabalhista. São Paulo: LTr, 2017, p.19.
[11]HELD, David.“Ciudadanía y autonomía”, en revista La Política, Ciudadanía, el Debate Contemporáneo, nr. 3, Barcelona, Editorial Paidós, 2017. p. 45-46.
[12] ELIAS, Norbert. A Condição Humana Livro .Editor: Difel, 1992, p.70.
[13] ROSSO, Fernando. et tal. NUEVA SOCIEDAD 279 – El futuro del trabajo Mitos y realidades. Talleres Gráficos Nuevo Offset, Buenos Aires,Argentina.p.49 .
[14] PIKETTY, Thomas. Capital e ideologia. Tradução, Maria de Fátima Oliva do Coutto, Dorothée de Bruchard- 1 ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca,2002.