1. O direito ao ambiente sadio como direito humano fundamental
O direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, assegurado pela Constituição Federal (art. 225 da CF/88), foi elevado ao status de direito humano fundamental com o advento da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, primeiro diploma em escala global a não só reconhecer tal condição, como relacioná-la diretamente à proteção e resguardo do princípio da dignidade humana. Este princípio, reconceituado no Brasil após a CF/88, adquiriu uma inegável dimensão ecológica. O status de direito humano fundamental atribuído ao direito ao ambiente sadio foi consagrado no Princípio 1 da Declaração de Estocolmo de 1972:
Princípio 1
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
Em nível interno, a Constituição da República, ao tratar do meio ambiente em seu capítulo VI, estabeleceu de forma expressa no caput do artigo 225 sua categorização como patrimônio coletivo e bem de uso comum do povo.
Na dicção constitucional, portanto, o meio ambiente é classificado como um ente que não possui características de bem público ou privado na medida em que se dissocia da tradicional classificação bipolar dos bens jurídicos em públicos e privados, oriunda do direito romano[1]. Nesse sentido, o bem ambiental é definido pela Carta Política como bem “de uso comum do povo”, significando que nenhuma pessoa, seja ela pública ou privada, pode com ele estabelecer relação jurídica da qual se originem interesses ou ainda vantagens individuais ou coletivas, como as de usar, dispor, alienar, fruir, destruir ou qualquer outra, estabelecendo o que julgar mais adequado.
Na esteira deste entendimento, mostra-se vedada pela lei maior a possibilidade de se estabelecer com o meio ambiente relação semelhante a que se institui com outros bens de natureza pública ou privada, oriunda, por exemplo, do direito de propriedade ou, ainda, de outros institutos jurídicos. Por ser bem de uso comum do povo e essencial à saudável qualidade de vida, conecta-se, por definição, a um dos princípios fundamentais da Lei Maior, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III da CF/88).
Exsurge claro, pois, que o meio ambiente pertence à categoria dos bens de natureza difusa, advindos de interesses transindividuais, de natureza indivisível, cujos titulares são as denominadas pessoas indeterminadas. Devido à classificação do meio ambiente como bem de uso comum do povo, o bem ambiental possui natureza jurídica diversa da doutrina civilista clássica, especialmente daquilo que esta conceitua como coisa[2]. Embora não seja objeto do presente trabalho o aprofundamento do exame da natureza jurídica do bem ambiental em todas as suas nuances, é oportuno referir a noção de macrobem ambiental como posicionada por José Rubens Morato Leite:
[…] O ambiente, como macrobem, configura-se como um bem incorpóreo e imaterial de uso comum do povo, o que determina que o proprietário (púbico ou privado) de um bem com valor ambiental não poderá dispor da qualidade do ambiente em razão do macrobem pertencer a todos, conforme se pode extrair do comando constitucional. Em razão da natureza difusa do macrobem ambiental, o ambiente não pode ser individualizado, devendo ser compreendido como a unidade e a totalidade das relações presentes no meio natural[3]. Devido à sua natureza difusa, por mais que seja possível a individualização dos bens ambientais de forma singularizada (florestas, rios, espécies da fauna, espécies da flora, etc.), o ambiente, enquanto ecossistema, não permite a sua concepção sem a integralidade dos bens ambientais, constituindo um único bem imaterial (e sistêmico). Portanto, com relação ao macrobem ambiental, a sua natureza será sempre púbica, como preceitua a Constituição Federal em seu art. 225, caput, ao dispor que o ambiente se trata de um bem de uso comum do povo.
Acompanhando este entendimento, é elucidativa a posição de Cristiane Derani[4] ao apontar para o caráter híbrido do direito constitucional ao meio ambiente sadio, posto que desprovido de uma dimensão de supremacia privada sobre tal direito, já que o mesmo se trata de patrimônio coletivo e de uso comum do povo. No mesmo sentido é a posição de Celso Antônio Pacheco Fiorillo[5], que refere uma concepção desse direito para além do direito individual.
A par da concepção de meio ambiente enquanto bem de natureza difusa, revela-se outra característica de fundamental importância a merecer exame: a classificação e a categorização do meio ambiente enquanto direito fundamental no âmbito da CF/88.
Ainda que não inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais constantes do Título II da CF/88, o direito ao meio ambiente sadio assume contornos de direito fundamental constitucional. Esse entendimento encontra amparo na mais atualizada doutrina e também na jurisprudência brasileira que acolhe e reconhece a tese da “jusfundamentalidade” do direito ao ambiente com base na chamada “abertura material do catálogo de direitos fundamentais” (art. 5°, § 2°, da CRFB).[6]
Nesse sentido, a doutrina jurídica brasileira destaca basicamente duas perspectivas de valoração da denominada “fundamentalidade” dos direitos fundamentais: formal e material[7]. Sob a perspectiva de sua fundamentalidade formal, os direitos fundamentais são concebidos como tal haja vista a sua efetiva presença na lista designativa dos direitos fundamentais constantes no texto constitucional. Como tal, estes direitos fundamentais estarão listados expressamente na Constituição no local correspondente. É o que ocorre com o rol de direitos expressamente consignados no Título II da Constituição Federal.
No que diz respeito à perspectiva de sua fundamentalidade material, o direito fundamental é concebido tendo em vista a sua consonância com os princípios e valores constitucionais fundamentais – entre eles o da dignidade da pessoa humana – do que necessariamente sua presença de forma expressa na nominata dos direitos fundamentais descritos no texto constitucional.
Dessa forma, a valoração e a aferição não só da constitucionalidade mas sobretudo da fundamentalidade deste direito dependerá do grau de consonância entre o seu núcleo essencial e o núcleo essencial dos valores constitucionais fundamentais, em especial daqueles que se referem a decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade e o princípio da dignidade da pessoa humana[8]. Nesse sentido, vale referir a lição de Gomes Canotilho, referido por Fensterseifer[9]:
[…] Canotilho, nesta perspectiva, refere que os direitos fundamentais constituem-se de uma ‘norma de fattispecie aberta’, abrangendo, para além das objetivações concretas, ‘todas as possibilidades de ‘direitos’ que se propõem no horizonte da ação humana’, o que permite “considerar como direitos extraconstitucionais materialmente fundamentais os direitos equiparáveis pelo seu objeto e importância aos diversos tipos de direitos formalmente fundamentais”.
Nesta mesma direção apontam as conclusões de Robert Alexy[10]: “[…] os direitos fundamentais são materialmente fundamentais porque com eles se tomam decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade […]”.
No encalço desse entendimento, sob o ponto de vista de sua fundamentalidade formal, não obstante, como referido, estar ausente do rol dos direitos e garantias fundamentais – porém presente de forma implícita no texto – o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado em sua perspectiva de equidade intergeracional, como descrito no artigo 225 da Constituição Federal, integra induvidosamente o denominado rol dos direitos fundamentais da Carta Magna[11].
Assim, o legislador constituinte, ao tratar o meio ambiente enquanto “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225, caput da CF/88), elevou este “bem” ao patamar de direito fundamental no cenário jurídico-constitucional brasileiro. Este alçar do direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ao patamar de direito fundamental constitucional pelo critério da fundamentalidade material deu-se mediante o direito constitucional positivo na forma do § 2° do artigo 5° da Constituição Federal[12].
Compartilhando do mesmo pensamento, Herman Benjamin, citado por Fensterseifer[13], preleciona que: “a Constituição Federal de 1988 elevou o direito ao meio ambiente à categoria de direito fundamental do homem, ao caracterizar o equilíbrio ecológico como bem essencial à sadia qualidade de vida.”
Tais pressupostos implicam necessariamente na conclusão de que o verdadeiro espírito da lei, especialmente dos mandamentos constitucionais transcritos, não é identificável, nem mensurável, mediante a interpretação isolada de um ou de outro preceito; exsurgirá, sim, para o hermeneuta atento, do exame do conjunto das normas que visam ao mesmo fim. E esse exame há de conduzir-se, há de ser balizado pelo absoluto respeito à hierarquia dos diplomas em que são inseridos os mandamentos perquiridos.
O exame, sem esta visão do todo, do conjunto das normas voltadas para o mesmo fim, sempre será pericárdico, superficial, por isso imprestável para conduzir ao correto e justo entendimento. Ao estudioso da lei compete ir, sempre, ao âmago de cada dispositivo legal e pesquisar, em toda profundeza e amplitude, a legislação sob seu exame.
Nesta ambiência temática, interpretada a norma inserta no artigo 225 da CF/88, sem qualquer concessão à subalternidade da legislação infraconstitucional e dentro dos parâmetros apontados pelo mandamento maior, há de aflorar, de forma imediata e clara, a proteção constitucional do meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como direito dotado de fundamentalidade constitucional.
2. O marco ético-ecológico primordial de valência ontológica
A partir destas reflexões, quero indagar, neste breve ensaio, se no contexto da atual crise ecológica – que é a crise do paradigma antropocêntrico, portanto uma crise de natureza civilizatória – existe espaço para o assentamento de um novo marco axiológico que reconheça a existência de valores intrínsecos à Natureza concebendo-a como um sujeito de direitos.
Considerando-se a relação ser humano-natureza tal como hoje se apresenta, em que o ser humano é o télos valorativo e a Natureza um conjunto de objetos sob o seu domínio, penso ser oportuno perquirir como se daria a conversão do atual paradigma antropocêntrico-utilitarista em um novo referencial ético-ecológico de matriz ecocêntrica, tal como pode ser.
Entro no tema a partir da Constituição do Equador. Aprovada com mais de 64% dos votos no dia 28 de setembro de 2008 por meio de Assembleia Nacional Constituinte realizada em sessões contínuas em vários locais do país, além daquela permanente em Ciudad Alfaro, localidade de Montecristi, de forma pioneira no mundo reconheceu, em seu artigo 71[14], a Natureza ou Pacha Mama como sujeito de direitos:
Art. 71. A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.
Toda pessoa, comunidade, povoado, ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza. Para aplicar e interpretar estes direitos, observar-se-ão os princípios estabelecidos na Constituição no que for pertinente.
O Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas e os entes coletivos para que protejam a natureza e promovam o respeito a todos os elementos que formam um ecossistema. (tradução livre, sem grifos no original)
Talvez a maior contribuição trazida pela Constituição Equatoriana seja a consagração em nível constitucional da concepção ecocêntrica que introduz os direitos da natureza como mandamento constitucional de natureza vinculante. Já a partir de seu preâmbulo celebra “a natureza, a Pacha Mama, de que somos parte e que é vital para nossa existência”, invocando a “sabedoria de todas as culturas que nos enriquecem como sociedade”.
No exame da matéria e sempre que possível, procurarei aliar o que o Direito permite ao que este gabarito de nova grandeza ora proposto prescreve, a fim de que a demanda por este novo marco ético-ecológico original se revele tão indeclinável quanto óbvio, com o propósito que reconheçamos os direitos da Natureza como uma invariante axiológica[15] de natureza fundacional.
Todas as vezes que medito acerca do tema da Natureza como sujeito de direitos e de sua qualidade de sujeito nesse contexto, sinto-me animado por encontrar nessas reflexões sempre novas razões para crer que, ao mesmo tempo em que como seres humanos somos a força geradora do atual quadro de colapso da ecosfera, cuja valência ecológica é ainda incalculável pela ciência, penso que nos é dado, igualmente, o poder de gerar as condições necessárias para dele nos distanciarmos.
Partindo deste ponto de vista, entendo ser possível afirmar que existe, sim, a possibilidade de estabelecermos uma nova relação com a natureza enquanto espaço “onde se reproduz e realiza a vida” como consignado na Carta Política do Equador (Art. 71), dessa vez concebida como sujeito e não objeto de exploração a partir de interesses exclusivamente humanos. Ou seja: se a catástrofe ecológica é um produto humano, a ventura por um novo horizonte também o pode ser. A tragédia, sob esse prisma, não é um fato consumado, podendo obviamente ser revertida. Em contrapartida, essa não é uma tarefa que pode ser confiada exclusivamente aos políticos ou ao Estado. Ela deve ser, antes de tudo, uma obra de toda a sociedade.
Após o advento da revolução científica (séc. XVI ao séc. XVIII) e sobretudo a partir da influência do pensamento do Visconde St. Alban[16], concebemos a Natureza como um conjunto de objetos, animados ou inanimados, dotados de utilidade atual ou futura em função das conveniências – ou desejos – exclusivamente humanos. Isso implica em estabelecer uma relação de valoração extrínseca à Natureza, pois a ideia de valor passa a ser entendida como algo externo ao mundo natural, ou seja, uma qualidade exclusivamente atribuída pelos seres humanos.
Por este raciocínio, um animal, uma reserva florestal ou um rio, uma cachoeira ou uma determinada comunidade biótica, não possuem valores por si mesmos, intrinsicamente considerados. Tais atributos sempre lhes são concedidos, ofertados e atribuídos pelas pessoas, no caso, por nós, seres humanos. A partir dessa matriz valorativa, pode-se perceber com uma certa clareza que a relação ser humano-natureza sempre foi mediada pelo conceito de propriedade, e, por consequência, de apropriação pelos seres humanos.
A natureza, assim, destituída de valor próprio pela sua tão só existência, como invariavelmente tem sido por nós considerada, converte-se em algo à disposição de homens e mulheres onipotentes, pronta para ser apropriada, explorada, dominada e exaurida, mercê unicamente de sua utilidade para a espécie humana.
É bastante conhecida, aliás, a passagem referida por Humberto Mariottti[17] sobre Hanah Arendt quando se refere sobre os bôeres europeus. Em uma digressão sobre a gênese do representacionismo enquanto modelo teórico dos mais aceitos no âmbito da teoria do conhecimento e consagrado como marco epistemológico prevalente na atualidade de nossa cultura – cuja proposta central é de que […] o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo, onde a mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria “informações” e nossa tarefa seria extraí-las dele por meio da cognição […] – assim se manifesta:
[…] o representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico comentado por Hanah Arendt em relação aos bôeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de que eles e comportavam como se fizessem parte da natureza. Não haviam, como os europeus, criado âmbito humano separado do mundo natural. Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um “recurso” a ser explorado. Por isso, era “justo” que fossem amplamente utilizados como produtores de energia mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto, principal característica da concepção representacionista. Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. […]. (sem grifos no original)
Desde o ponto a partir do qual a biologia da cognição[18] concebe a vida, ou seja, como um processo de conhecimento não hierárquico e horizontal onde todas as formas de vida estão relacionadas e coexistem em uma dimensão de interconexão e cooperatividade, os conceitos de autonomia e dependência dos seres vivos deixam de ser opostos e inconciliáveis para serem complementares e autoconstruídos. Nesse plano, o mundo em que vivemos não nos é pré-dado, mas sim, o construímos e somos por ele construídos ao longo de um processo incessante de mútua interação.
Neste universo, ao passo que nossa trajetória de vida nos faz construir o nosso conhecimento sobre o mundo, este também constrói o seu próprio conhecimento a nosso respeito, em uma dinâmica de cooperatividade circular. Tal conhecimento, não obstante, não se limita a simplesmente processar de forma passiva informações de um mundo anterior a experiência do observador. Ao contrário, processa de forma autônoma e autoprodutora uma plena interação com o meio em um vivendo no conhecimento e conhecendo no viver.
Assim, a grande questão colocada – e hoje comprovada – pela biologia da cognição, é perquirir se a vida é um processo de conhecimento e se os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação, sem hierarquização. Autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis já que uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, em uma dinâmica circular em que não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade e cumplicidade na circularidade.
Portanto, os seres vivos, independentemente do grau que ocupem na escala da evolução, aprendem vivendo e vivem aprendendo, não obstante ser esta uma posição praticamente desconhecida entre nós e mesmo estranha a quase tudo que aprendemos pela educação formal.
3. Considerações finais
A partir do que foi examinado e apoiado pelos pressupostos trazidos pela biologia da cognição, sem prejuízo de outros como os fixados pela teoria da evolução, é possível afirmar com elevado grau de plausibilidade, que o assentamento de um novo marco axiológico que reconheça valores intrínsecos à Natureza e a conceba como um sujeito de direitos, não prescinde de uma hermenêutica ecológica da Constituição Federal.
E essa exegese deve empunhar como fundamento, como norte axiológico, o absoluto respeito a um pressuposto fundamental inerente a cada ser vivo, pertencente ou não à espécie humana: a condição de organismo que, possuindo ao mesmo tempo espírito e corpo e por isso experimentando por si mesmo e de forma direta o fenômeno da vida, é ao mesmo tempo titular e sujeito de direitos por ser titular do direito inalienável à vida.
Erguer-se, portanto, a partir desta conclusão que “expressa uma interpretação ontológica dos fenômenos biológicos”, como sustenta Hans Jonas[19], uma condição fundamental própria, de natureza ontológica, porque intrínseca aos seres vivos de qualquer espécie, que gera a possibilidade de abdicarmos do paradigma de matriz antropocêntrico-utilitarista, nascido com a modernidade, que hoje orienta a relação da espécie humana com a natureza.
Esta condição primordial, sem a qual nada subsiste e sobre a qual tudo se edifica, nos permite perquirir acerca da existência das condições de possibilidade para uma adequada conversão do paradigma agora superado, para um novo marco referencial ético-ecológico de matriz ecocêntrica, tendo como fundamento a compreensão de que todos os seres vivos possuem a singular condição de vivenciarem conjuntamente a Natureza possuindo, de forma congênere, o direito inalienável à vida como condição ontológica primordial, pressuposto este, é bom lembrar, acolhido como direito fundamental inviolável pelo disposto no caput do artigo 5° da Constituição da República[20].
[1] SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. São Paulo: Pillares, 2008.
[2] Nesse sentido, aponta Tiago Fensterseifer: “Também merece destaque uma reflexão acerca do conceito e do regime jurídico do bem ambiental, na medida em que a Constituição refere constituir-se o ambiente de um “bem de uso comum do povo”. Primeiramente, deve-se ressaltar que o conceito de bem ambiental difere substancialmente do que a doutrina civilista clássica conceitua como a “coisa”, sobre a qual recai a exclusividade do exercício da titularidade. É necessário fincar as bases para compreensão do regime jurídico que recai sobre o bem ambiental na sua complexidade biofísica e na multiplicidade de interesses (patrimoniais e não-patrimoniais; individuais, coletivos e difusos) que recaem sobre a utilização de determinado bem integrante do patrimônio ambiental”. FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 164.
[3] LEITE, José Rubens Morato apud FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 165.
[4] DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 245-246.
[5] FIORILLO, 2005 apud SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. São Paulo: Pillares, 2008. p. 38.
[6] FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 166.
[7] A doutrina referente ao conceito de fundamentalidade formal e material intrínseca à noção de direitos fundamentais, recepcionada no direito português por Canotilho, pertence ao jusfilósofo alemão R. Alexy, referida por SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 86.
[8] Ibid.
[9] No mesmo sentido, CANOTILHO destaca que somente a idéia de “fundamentalidade material” pode fornecer suporte para a abertura da constituição a outros direitos também fundamentais, isto é, direitos materialmente, mas não formalmente fundamentais, conforme dispõe o art. 16°/1° da Constituição Portuguesa. CANOTILHO, José Joaquim Gomes apud FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 167.
[10] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 180.
[11] “O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado integra, na realidade, o rol dos assim denominados direitos de terceira dimensão, cuidando-se de típico direito difuso, inobstante também tenha por objetivo o resguardo de uma existência digna do ser humano, na sua dimensão individual e social”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 133.
[12] Nesse sentido, anota Fensterseifer: “A despeito de não estar previsto no Título II da Constituição, é, portanto, por intermédio do direito constitucional positivo (art. 5°, §2°, da CF) que é atribuído ao direito ao ambiente fundamentalidade material, o que se dá pela abertura material da Lei Fundamental a direitos fundamentais não constantes do seu rol fundamental e, portanto, apenas materialmente fundamental (situados fora do catálogo dos direitos fundamentais ou mesmo do texto constitucional). No caso do direito ao ambiente, o mesmo integra a Constituição formal (art. 225 e demais artigos dispersos sobre o tema), e, portanto, apresenta a característica de um direito formal e materialmente fundamental”. FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 168.
[13] BENJAMIN, Antônio Herman apud FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 168.
[14] Nota: […] CONSTITUCIÓN DEL ECUADOR – Capítulo séptimo Derechos de la naturaleza – Art. 71.- La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema.
[15] Em tempo: A expressão é de Miguel Reale.
[16] Em tempo: Título de nobreza outorgado a “Francis Bacon” (1.561-1626).
[17] Nota: Humberto Mariotti (Prefácio) – In: MATURANA, Humberto R.; VARELA, J. Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo. Palas Athena Editora. 9ª ed.,2011, pág. 9. Referência: (ARENDT, Hanah. Origens do Totalitarismo. São Paulo. Ed. Companhia das Letras.1998, pgs. 222-223).
[18] Idem, págs. 7-17.
[19] JONAS, Hans. O PRINCÍPIO VIDA: Fundamentos para uma biologia filosófica. Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2004.
[20] CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]