Artigo

Artigos Recentes

Os desafios da efetivação da democracia em uma sociedade global: entre limites e (novas) possibilidades

Prof.ª Dr.ª Sandra Regina Martini

Professora do PPG em Direito da Universidade La Salle, Canoas/RS. Pós-doutora em Direito (Roma Tre) e Pós-doutora em Políticas Públicas (Universidade de Salerno).

Compartilhe este texto

Em um contexto de problemas transfronteiriços, em que o modelo jurídico e o Estado são demandados a responder a questões que não se limitam territorialmente, o presente artigo visa a refletir sobre os desafios para a efetivação da democracia e dos direitos humanos em uma sociedade global e complexa. O estudo parte do desvelamento de um paradoxo que consiste em uma dissonância fático-normativa, na medida em que, por um lado, há uma ampla quantidade de normas nacionais e internacionais e, por outro, um cenário de baixa concretização. De fato, a forma moderna político-jurídica “experimentou emancipações, porém mais frequentemente desastres; falou de direitos universais, mas praticou egoísmos territoriais, baniu a violência, mas continuou a praticá-la reiteradamente” (RESTA, 2004, p. 78). Desvelar paradoxos, para (re)pensar a democracia em seus limites e novas possibilidades, compreende o escopo do desenvolvimento deste trabalho desenvolvido a partir da perspectiva da Metateoria do Direito Fraterno, desenvolvida por Eligio Resta.

A sociedade atual passa por profundas transformações em decorrência do próprio processo evolutivo. Os valores que nos fundam enquanto cidadãos cosmopolitas mudaram a partir das constantes crises sociais, econômicas, políticas e sobretudo ambientais. Nota-se que, hoje, quando falamos em crise, o ponto central é sempre a crise ambiental, a qual tem pouco de natural e é gerada pela falta de políticas públicas capazes de prevenir riscos ambientais e, portanto, riscos sociais. No ano de 2024, as catástrofes (humano-)naturais ocorridas no estado do Rio Grande do Sul em abril e maio e seus efeitos evidenciam a intensidade dessa crise. O estado gaúcho possui 497 municípios. Desses, de acordo com os dados da Defesa Civil, 478 municípios foram afetados pelas chuvas torrenciais e enchentes, o que representa mais de 95% da região, em que mais de dois milhões de pessoas foram diretamente atingidas. Esses números dimensionam a intensidade da catástrofe ecológica. Algumas cidades, em especial as do Vale do Taquari, já haviam sido afetadas severamente em 2023, tendo os efeitos amplificados por novas e maiores ocorrências em 2024.

E isso não compreende fenômeno isolado, mas expressão de problemas que ultrapassam fronteiras – o que se relaciona diretamente à característica global da sociedade contemporânea. No mesmo período das enchentes no estado do Rio Grande do Sul, é estranha a coincidência, no mesmo período de maio de 2024, de enchentes no Afeganistão, uma região caracterizada tipicamente por seu clima semiárido. No próprio Brasil, na região norte, por sua vez, a seca histórica do rio Amazonas registrada em 2023 também denota uma situação preocupante de desequilíbrio no ecossistema global, notadamente em uma região local de grande e riquíssima biodiversidade. Ainda no Brasil, recentemente as grandes queimadas e seus efeitos na região do Pantanal e do Amazonas demonstram instabilidades recorrentes e muito preocupantes.

A esse panorama – no qual a crise ambiental evidencia a premência de ações sócio-político-jurídicas que adequadamente respondam à tal complexidade – somam-se outros desafios de ordem simultaneamente global e local para a efetivação da democracia e dos direitos humanos. Nesse aspecto, resulta paradoxal a “era dos direitos” quando se identifica, por um lado, uma ampla inflação teórico-normativa sobre direitos humanos e, por outro, se identifica um cenário de inefetividade. O suporte fático ensejador desse paradoxo e que esclarece o contraste entre a ampla proclamação teórico-normativa dos direitos humanos e sua inefetividade pode ser constatado pelos seguintes dados empíricos, em uma referência exemplificativa: a) conforme dados da OXFAM em relatório emitido em janeiro de 2024, “o 1% mais rico do mundo tem 43% de todos os ativos financeiros globais”, assim como esse mesmo “1% mais rico do mundo emite tanta poluição de carbono que os dois terços mais pobres da humanidade” – esse número é bastante expressivo e preocupante (e determinante de uma série de privações em relação ao acesso à saúde, à educação etc.); b) no informe sobre o desenvolvimento humano 2023/2024 da ONU, os dados sobre alterações climáticas são preocupantes, assim como o são as desigualdades entre os países com IDH elevado quando comparados àqueles com IDH em patamar menor; igualmente, nesse informe, está o registro da preocupação quanto a governos cuja atuação por intermédio de seus líderes minam as condições da democracia; c) conforme relatório da ONU sobre mortalidade infantil, com base em dados mundiais, cerca de 4,9 milhões de crianças com menos de 5 anos morreram em 2022, a maior parte por causas completamente evitáveis, mais de 13 mil por dia; d) a existência de guerras no Oriente Médio, na Ucrânia/Rússia, entre outros conflitos militares; e) de acordo com o “Instituto de Pesquisa sobre a Paz Internacional de Estocolmo (SIPRI)”, os gastos militares no mundo em 2023 aproximaram-se de 2,4 trilhões de dólares – liderado por Estados Unidos, China e Rússia; para se ter uma dimensão disso, em termos comparativos, esse valor é muito maior do que o produto interno bruto (PIB) brasileiro (cerca de 1,92 trilhão de dólares); f) segundo dados de 2021 da “Walk Free Fundation”, cerca de 50 milhões de pessoas ainda vivem em condições de escravidão moderna no mundo.

Na atual conjuntura, essas referências empíricas poderiam estender-se longamente. E isso tudo à sombra de Constituições democráticas e de tratados sobre direitos humanos nas quais grandes potências econômico-militares bradam retoricamente pela defesa de direitos humanos, mas praticam atrocidades, não raras vezes sob a bandeira desses direitos. O desassossego que vivemos ultrapassa as fronteiras geográficas e políticas em função de guerras, mudanças climáticas, crescimento das desigualdades sociais, aumento de autoritarismo – tanto de esquerda como de direita –, déficit democrático. O que fazer então? Como encontrar formas de reverter a situação atual? Através de que mecanismos? É possível uma mudança? Nesse momento de crise acentuada, é interessante a perspectiva de Bruno Latour e de Nikolaj Schultz (p. 75) que coloca a seguinte reflexão:

 

Ci sono tempi in cui è forte la tentazzione di cedere alla disperazione. È certamente questo il caso de noi oggi, nel vedere como le persone, oltre a doversi districare all’interno del tragico dilema della mutazione climatica devono anche far propria la traumatica esperienza di una nouva guerra di conquista e annichilazione sul suolo europeo.[1]

 

Como concretizar democracia e direitos humanos aqui e agora, no contexto de uma sociedade global, com problemas de ordem simultaneamente global e local (glocal)? Temos perguntas e caminhos para refletir a situação atual desde uma perspectiva teórica relativamente nova: a Metateoria do Direito Fraterno, desenvolvida na Itália, por Eligio Resta, professor emérito da Università Roma Tre. Inicialmente é preciso entender que a fraternidade não é um princípio ou um valor, mas uma dimensão transformadora, ela é a desmedida entre igualdade e liberdade, desveladora de paradoxos. Falar em fraternidade implica em ver o outro como um “outro-eu”, ou seja, colocar-se no lugar do outro para promover uma maior inclusão, uma não-violência. Aspectos difíceis atualmente, sobretudo considerando que isso implica auto-observação e autorresponsabilização. Isso implica superar “falácias normativas” (RESTA, 2004, p. 65), pois as normas não anulam os problemas por si mesmas. A possibilidade de mudar uma sociedade está na própria sociedade e não fora dela e, por isso, a mudança de uma sociedade preconceituosa ou autoritária só se dará na própria sociedade. Existe uma enorme diferença entre ser humano e ter humanidade – em que medida isso reflete no Direito? Entre o rótulo “democracia” e a prática efetivamente democrática pode haver um abismo.

Entender as emergências atuais tanto no campo político como em qualquer outra área é um desafio. Eligio Resta coloca a fraternidade nesses termos, como uma “aposta”. A aposta na fraternidade nos mostra que precisamos estarmos envolvidos no processo de transformação social. A fraternidade propõe a ruptura de toda e qualquer barreira de exclusão e discriminação, propõe fundamentalmente a ruptura do código “amigo/inimigo”, “eu/outro”. Busca a inclusão universal, a não-violência, a mediação e a pactuação constante. Mesmo sabendo do anacronismo da ideia de fraternidade é preciso repensar o mundo em que vivemos. A seguinte passagem de Eligio Resta (2004, p. 119) expressa essas ideias:

 

O Direito Fraterno, nesse momento, carece de fundamento e se veste de fraquezas; distancia-se da afirmação de que “deve” ser e de que há uma verdade que o move. Ao contrário, arrisca uma jogada, exatamente como na aposta de Pascal sobre a existência do bem comum: se tivesse existido, o benefício teria sido enormemente maior do que o custo empregado com a própria contribuição pessoal. Se, ao contrário, não tivesse existido, aquilo que acontece frequentemente teria tido um pequeno custo em comparação àquilo que poderia ter ganhado; convém, portanto, apostar na fraternidade.

 

Eligio Resta não está sozinho neste caminho; aqui vale recordar o que fala Bauman em um de seus últimos escritos intitulado “Retrotopia” (2022, p. 169):

 

Dobbiamo prepararci a um lungo período di domande più che di rsiposte, di problemi più che de soluzioni, in bilico tra il sucesso e il falimento. Ma in caso di sconfitta il verdetto per cui lo pronunciò Maragaret Thatcher – sarà senza apelo. Noi – abitanti umani della Terra – siamo, come mai prima d’ora, in uma situazione de aut aut: possiamo scegliere se prendercí per mano o finiere in una fossa comune.[2]

 

Bauman não viveu para ver que, durante a pandemia, “acabamos todos literalmente na mesma vala”, também não viveu para perceber que no Rio Grande do Sul, em maio de 2024, não tínhamos – em muitos lugares – valas para sermos enterrados… Os cenários apocalípticos vivenciados e externalizados por fortes crises denotam, por um lado, a premência de ações sócio-político-jurídicas adequadas e, por outro, os perigos de se permanecer na inércia. A transformação da realidade depende da própria humanidade e é nela que se deve apostar. Não se desconhecem os desafios que isso implica, na medida em que não há transferência, mas assunção de responsabilidade. As mudanças na sociedade não ocorrem de per si, como se as pessoas fossem apenas meros espectadores.

A Metateoria do Direito Fraterno desvela os paradoxos do modelo jurídico contemporâneo e, como decorrência disso, cria uma abertura para novas potencialidades. Justamente porque são identificados limites é que novas possibilidades podem ser vislumbradas e efetivadas. O mesmo ser humano capaz de se autodestruir é aquele que possui potencialidades talvez ainda não exploradas rumo à efetividade dos códigos fraternos. Resta, portanto, investigar os pressupostos para o ainda inexplorado e concretizá-lo, aqui e agora.

 


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Traduzione di Marco Cupellaro. Bari: Laterza, 2022.

BOBBIO, Norberto. L’età dei diritti. Torino: Einaudi, 2014.

FERRAJOLI, Luigi. Por uma Constituição da Terra: a humanidade em uma encruzilhada. Florianópolis: Emais, 2023.

LATOUR, Bruno; e SCHULTZ, Nikolaj. Manifesto per una nuova ecologia: facciamoci sentire. Traduzione di Mairo Capello. Torino: Giulio Einaudi editore, 2023.

ONU. Informe sobre desarrollo humano 2023/2024. Disponível em: <https://hdr.undp.org/system/files/documents/global-report-document/hdr2023-24snapshotsp.pdf>. Acesso em ago. de 2024.

ONU. Relatório sobre mortalidade infantil. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/263674-relat%C3%B3rio-sobre-mortalidade-infantil-2023>. Acesso em: ago. 2024.

OXFAM BRASIL. Desigualdade AS. Relatório de janeiro de 2024. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/desigualdade-s-a/>. Acesso em: ago. 2024.

RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma: Laterza, 2020.

______. La certezza e la speranza: saggio su diritto e violenza. Roma: Laterza, 2007.

______. Le stelle e le masserizie: paradigmi dell’osservatore. Bari: Laterza, 1997.

______. O Direito Fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.

STOCKHOLM INTERNATIONAL PEACE RESEARCH INSTITUTE – SIPRI. Global military spending surges amid war, rising tensions and insecurity. Disponível em: <https://www.sipri.org/media/press-release/2024/global-military-spending-surges-amid-war-rising-tensions-and-insecurity>. Acesso em: ago. de 2024.

WALK FREE FOUNDATION. The global slavery index. Disponível em: <https://www.walkfree.org/global-slavery-index/>. Acesso em: ago. de 2024.

[1] Em tradução livre: “Há momentos em que a tentação de ceder ao desespero é forte. Este é certamente o nosso caso hoje, ao vermos como as pessoas, além de terem de se libertar do trágico dilema das alterações climáticas, devem também assumir a experiência traumática de uma nova guerra de conquista e aniquilação em solo europeu”.

[2] Em tradução livre: “Devemos preparar-nos para um longo período de perguntas em vez de respostas, de problemas em vez de soluções, no equilíbrio entre o sucesso e o fracasso. Mas em caso de derrota, o veredicto proferido por Maragaret Thatcher será impecável. Nós – os habitantes humanos da Terra – estamos, como nunca antes, numa situação de um ou outro: podemos escolher se daremos as mãos ou se acabaremos numa vala comum”.

Áudios

Vídeos

O Ciclo 2: A democracia e o Sul global é composto de oficinas preparatórias para um importante momento: uma sessão plenária que irá acontecer, no dia 15 de novembro, durante o G20 Social, quando entregaremos um documentos com análises e recomendações para a nova presidência do fórum, da África do Sul, que assume o comando grupo.
O documentário Vozes pela Democracia reuniu diversas falas vindas de diferentes movimentos sociais, professores e pesquisadores, organizações não-governamentais e de representantes dos governos em prol da defesa de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.
Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
plugins premium WordPress