Por volta do ano 508 a.C., Clístenes, um político da aristocracia ateniense, liderou uma revolta popular e conseguiu reformar a constituição da antiga Atenas. Essa reforma política proporcionou aos cidadãos atenienses, independentemente do critério de renda, o direito de voto e ocupação dos mais diversos cargos, ampliando também o poder da assembleia popular.
Naquele momento, Clístenes ajudou a consolidar o conceito de “democracia”, com suas principais características, a participação popular ampla, a ampliação do poder da Assembleia Popular, ou Eclésia, a rotatividade de cargos e, principalmente, a igualdade de direitos e deveres de todos os cidadãos perante a lei, independentemente de sua posição social.
Essas reformas de Clístenes lançaram as bases da democracia ateniense, que se tornaria um modelo influente para o desenvolvimento de sistemas democráticos posteriores. Portanto, um sistema democrático se baseia, principalmente, na soberania popular, na igualdade política e na participação ativa dos cidadãos nas decisões que afetam suas vidas.
Clístenes estaria hoje muito preocupado com os rumos que sua democracia está tomando. Como supor que o processo de escolha democrático possa se organizar com base em estrutras economicamente tão desiguais, nas quais o poder econômico contrasta com a crescente miséria de grande parte da população.
Não se pode falar em igualdade política, com estruturas sociais baseadas na super concentração de riquezas. No planeta, hoje, em torno de duas mil pessoas concentram uma riqueza equivalente à possuída por três bilhões de pessoas. Algo até difícil de imaginar.
Tal concentração de riqueza convive com quase oitocentas milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave, situação de extrema miséria e fome.
E segundo estimativas dos principais pesquisadores, a concentração de riqueza no mundo vem aumentando. Se as estruturas econômicas continuarem as mesmas, chegaremos a um momento em que praticamente toda a riqueza estará concentrada em um conjunto pequeno de famílias. E riqueza significa poder.
A existência de fome em uma sociedade democrática torna-se um paradoxo para a efetivação de uma democracia plena. Isso porque a fome compromete a capacidade dos cidadãos de exercerem seus direitos políticos e de participarem plenamente do processo democrático.
A fome é uma das formas mais severas de privação de liberdade e de violação dos direitos humanos básicos. Quando as pessoas não têm acesso a alimentos suficientes e nutritivos, elas ficam enfraquecidas, doentes e incapazes de se engajar em atividades políticas e sociais. Isso significa que a fome pode privar os cidadãos de sua capacidade de participar ativamente das decisões que afetam suas vidas, comprometendo assim a legitimidade e a efetividade da democracia.
Além disso, a extrema miséria leva à desigualdade de condições, à marginalização e à exclusão social, criando barreiras adicionais para a participação política igualitária. As pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar são muitas vezes as mesmas que enfrentam outras formas de discriminação e de falta de acesso a recursos e oportunidades, o que limita sua capacidade de exercer seus direitos políticos.
A fome não apenas compromete a participação política, mas também pode representar uma ameaça à própria estabilidade do regime democrático. Quando as pessoas passam fome, elas ficam mais vulneráveis a discursos populistas e a propostas demagógicas que prometem soluções rápidas e simplistas para seus problemas. Isso leva à erosão da confiança nas instituições democráticas e ao fortalecimento de forças antidemocráticas.
Isso talvez explique o porquê movimentos ultra-liberais, que se autodenominam “libertários” defendam a extinção de políticas sociais e de transferência de renda. Quanto mais pobre e desigual um país, mais pessoas estarão suscetiveis a apoiar medidas extremas, ligadas a promessas e discursos de fácil compreensão. Portanto, um campo fértil para idéias e ideais anti-sistema, ou seja, anti-democráticos.
Nesse sentido, a defesa da democracia pressupõe, inexoravelmente, a luta contra as desigualdades sociais e a extrema concentração de renda e riquezas. Sem isso, continuará crescente o número de pessoas caindo abaixo da linha da pobreza e, consequentemente, enfrentando situação de extrema miséria e fome.
E o principal meio de enfrentamento a essa questão é a mudança da lógica econômica, procedendo a mudanças de paradigmas. Se o modelo econômico leva à concentração de riqueza por poucos e à exclusão de muitos, ele precisa ser modificado.
A grande maioria dos países periféricos, onde há grande pobreza, utilizam modelos tributários e fiscais que se apóiam na tributação das classes médias e mais pobres e à quase isenção dos grandes produtores e setores financeiros. Em contrapartida, os seus sistemas fiscais priorizam o pagamento de dívidas e subsídios a esses mesmos setores. A conta final é a transferência de riqueza do trabalho dos menos abastados para as elites.
O Brasil é um exemplo clássico desse modelo. Apesar de figurar sempre entre os dez países com maior produção, está há anos entre os dez mais concentradores de riqueza. Isso ocorre não por acaso, mas pelos fatores listados acima.
E, seguindo a famosa frase atribuída a Eistein “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”, está na hora de mudança na perspectiva econômica para que possamos ter um reflexo benéfico no social.
Assim, para enfrentarmos o paradoxo da fome e da democracia, é necessário adotarmos uma abordagem abrangente que combine políticas econômicas e de desenvolvimento social.
Deve-se continuar com investimentos em programas de segurança alimentar e nutricional, como alimentação escolar, a distribuição de alimentos, a criação de bancos de alimentos, e programas de transferência de renda como Bolsa Família.
Entretanto, a principal mudança tem que ser na matriz econômica. Manter o aumento real da salário mínimo, junto com a implementação de políticas de preços justos para os produtos agrícolas dos pequenos agricultores familiares, promovendo a democratização do acesso à terra, aos recursos naturais e aos meios de produção, de modo a garantir a autonomia e a soberania alimentar das comunidades.
Ao mesmo tempo, reformando a matriz tributária, fortalecendo a cobrança de impostos dos mais ricos e diminuindo dos mais pobres, atrelado a uma nova política fiscal, que beneficie recursos mais abundantes para educação, saúde, ciência e tecnologia.
A defesa da democracia passa pela adoção de medidas para reduzir as desigualdades sociais e econômicas, de modo a criar condições mais favoráveis à participação política igualitária.
Se analisarmos, no planeta, os países onde a democracia plena se estabelece de forma mais robusta e regular, são estados onde há menos desigualdade social e, consequentemente, livres da extrema miséria e fome.
Como exemplo, podemos citar os países nórdico-escandinavos, onde observa-se uma trajetória de desenvolvimento socioeconômico sustentado, fruto de políticas públicas focadas no investimento em bem-estar social. A Noruega lidera o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), evidenciando os altos níveis de bem-estar e qualidade de vida de sua população. No Índice de Prosperidade, que avalia a riqueza e o bem-estar, a Dinamarca ocupa a segunda posição, seguida da Finlândia na terceira e da Suécia na sexta colocação. Esses resultados refletem a efetividade das políticas públicas desses países em promover a prosperidade de maneira abrangente.
Ademais, a Suécia se encontra em primeiro lugar no Índice de Democracia, enquanto a Dinamarca é considerada o segundo país mais pacífico do mundo. Essas classificações evidenciam o compromisso desses Estados com a estabilidade política, a participação cidadã e a resolução pacífica de conflitos.
Outra característica distintiva desses países é a baixa taxa de encarceramento, em comparação à média global. Essa realidade está associada a menores níveis de desigualdade socioeconômica e a um sistema de justiça criminal mais orientado à reintegração social do que à punição.
Em conjunto, esses indicadores retratam sociedades marcadas pela equidade, inclusão social e pela efetivação de direitos fundamentais, estabelecendo um padrão de desenvolvimento humano e bem-estar coletivo a ser considerado em análises comparativas. As políticas públicas desses países reconhecem o retorno social de investimentos em áreas-chave, como saúde, educação e igualdade de gênero. Tais investimentos contribuem para a melhoria dos indicadores de bem-estar e equidade, conferindo a essas sociedades níveis significativamente baixos de desigualdade.
Ademais, tais nações apresentam arranjos institucionais híbridos, reunindo virtuosidades tanto do livre mercado quanto do “welfare state”. Esse modelo híbrido, embora não isento de imperfeições, tem se mostrado eficaz na promoção da justiça social e do bem-estar coletivo.
Essa experiência aponta caminhos promissores para a construção de sociedades mais equitativas e inclusivas, fundamentadas no comprometimento com investimentos públicos e na solidariedade social.
Em suma, o momento histórico atual pode ser caracterizado como um período de transição e definições cruciais para a sociedade. Embora possa parecer paradoxal, essa conjuntura de exposição das desigualdades e intolerâncias representa uma oportunidade ímpar de repensar o modelo de organização social que almejamos. A ganância, a exploração, o ódio e a corrupção são frutos de um ambiente socioeconômico que prioriza o consumo e a acumulação de riqueza em detrimento do desenvolvimento humano integral.
Um aspecto crucial a ser destacado nos países nórdico-escandinavos é o alto nível de confiança depositado pelas respectivas populações nas principais instituições políticas e sociais. Essa confiança é fundamental para a aceitação da carga tributária, vista como um investimento de longo prazo em prol da sustentabilidade socioeconômica.
Essa confiança, no entanto, exige um correspondente nível de responsabilidade individual e coletiva. Quando a confiança é quebrada, torna-se extremamente desafiador para a sociedade funcionar de forma harmônica e efetiva. As crises sociais e políticas tendem a eclodir justamente em momentos de enfraquecimento dessa confiança.
A confiança também ajuda a explicar a aceitação, por parte da população, da elevada carga tributária nessas nações. Os cidadãos veem os impostos como um importante investimento em prol do bem estar da sociedade, confiando que os recursos serão empregados de maneira adequada, com alocações maciças em áreas estratégicas como saúde, educação, ciência e tecnologia.
Se vivo hoje estivesse, Clístenes estaria, certamente, invocando uma nova revolta popular para salvar sua democracia, instigando mudanças sócio-econômicas que contribuíssem para a diminuição das desigualdades sociais.
A fome corrói os pilares da democracia, como a participação política, a igualdade e a confiança nas instituições. Para fortalecer a democracia, é essencial combater as raízes da fome, através de políticas econômico-sociais abrangentes e inclusivas. Tais políticas criam as condições necessárias para que os cidadãos, especialmente os mais vulneráveis, possam exercer plenamente seus direitos políticos, além de fortalecer a legitimidade e a confiança nas instituições democráticas. Desse modo, o combate à fome se torna também uma estratégia para consolidar a democracia.
Em última instância, o que nos diferencia de outras espécies animais é a nossa capacidade única de pensamento e raciocínio. Diante dos aprendizados do passado, entramos no Século XXI com a oportunidade de refletir sobre os caminhos a serem trilhados pela humanidade. Vislumbra-se a possibilidade de construir um mundo que abrigue a todos de forma equânime, no qual ninguém seja deixado para trás. E, se falharmos, talvez não tenhamos uma nova oportunidade.
Bibliografia
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