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A dimensão coletiva da liberdade de expressão e sua relevância no combate à desinformação

João Brant

Diretor do Instituto Cultura e Democracia. É doutor em Ciência Política pela USP, com mestrado em Regulação e Políticas de Comunicação pela London School of Economics. Foi Secretário-Executivo do Ministério da Cultura (2015-16). É pesquisador e consultor em políticas de comunicação, Internet e cultura já tendo prestado consultorias à Unesco, Fundação Ford, Global Partners, OBSERVACOM, entre outras instituições.

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A liberdade de expressão, assim como a lua, tem duas faces. Uma, iluminada permanentemente, é a dimensão individual. É o elemento mais conhecido, que sustenta o direito de cada cidadão a expressar suas ideias sem interferência. A outra, pouco iluminada, é a dimensão coletiva ou social, que representa o direito coletivo de os cidadãos receberem quaisquer informações e conhecerem o pensamento alheio.

Embora pouca iluminada pelo debate público, essa dimensão é consolidada no debate internacional e na jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No documento de referência mais importante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Opinião Consultiva 5/1985, o tema aparece na seguinte forma:

Em sua dimensão social, a liberdade de expressão é um meio de troca de ideias e informações e de comunicação em massa entre seres humanos. Assim como compreende o direito de cada um de tentar comunicar aos outros seus próprios pontos de vista, também implica o direito de todos a saberem opiniões e notícias. Para o cidadão comum, o conhecimento da opinião alheia ou das informações disponíveis para outrem é tão importante quanto o direito de divulgação.[1]

A dimensão coletiva da liberdade de expressão se sustenta muito fortemente na compreensão da liberdade de expressão como precondição para a democracia. Essa visão, presente em textos de autores como Cass Sunstein e Alexander Meikeljohn, sustenta que a democracia depende de que o cidadão esteja bem-informado para a tomada de decisão política. Para isso acontecer, ele precisa ter acesso a um amplo leque de informações e a diferentes perspectivas e opiniões.

Nesse sentido, a dimensão coletiva ou social da liberdade de expressão respalda todas as medidas afirmativas de proteção e promoção da diversidade e pluralismo nas comunicações. No âmbito do Sistema Interamericano, ela vem sendo constantemente reafirmada, tanto pela Relatoria Especial de Liberdade de Expressão[2] quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[3].

Mas e a veracidade?

Se pluralismo e diversidade são considerados valores relevantes e amplamente aceitos como indicadores de efetividade da dimensão coletiva da liberdade de expressão, o tema da veracidade ou da confiabilidade da informação já é mais polêmico.

A mesma Opinião Consultiva 5/1985, que define claramente a dimensão coletiva da liberdade de expressão, afirma:

As duas dimensões mencionadas da liberdade de expressão devem ser garantidas simultaneamente. Não seria lícito invocar o direito da sociedade de ser informada com veracidade para fundamentar um regime de censura prévia, supostamente destinado a eliminar informações que seriam falsas a critério do censor. Nem seria admissível que, com base no direito de divulgação de informações e ideias, se constituíssem monopólios públicos ou privados sobre os meios de comunicação para tentar formar a opinião pública segundo um único ponto de vista.[4]

No mesmo sentido, a Declaração de Princípios de Liberdade de Expressão aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no ano 2000 afirma que “condicionamentos prévios, como veracidade, oportunidade ou imparcialidade por parte dos Estados, são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão reconhecido nos instrumentos internacionais”[5].

Por outro lado, a mesma Declaração de Princípios reconhece a ilegitimidade da difusão de informações ou notícias falsas, quando condiciona a punição por ofensas contra pessoas públicas ou funcionários públicos à comprovação de que, “na divulgação da notícia o comunicador teve a intenção de infligir dano ou pleno conhecimento de que a notícia falsa estava sendo divulgada ou foi realizada com negligência manifesta na busca da verdade ou falsidade da mesma”[6]. É o que se consagrou chamar de estândar de ‘real malícia’.

Nos dois textos, fica claro que a preocupação maior, tanto da Corte IDH como da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é que não se estabeleçam mecanismos de controle prévio da verdade por parte dos Estados, o que é absolutamente compreensível e desejável, dado o risco que seria a implantação de tal mecanismo para a democracia. Isso não significa, contudo, que se estabeleça como legítima e protegida legalmente a difusão de notícias falsas quando se tem conhecimento da falsidade ou quando houve negligência manifesta na apuração.

De fato, em 2013, a Corte consolidou esse entendimento no caso Memoli vs Argentina, ao afirmar o direito de o cidadão não receber informações manipuladas.

Por outro lado, no âmbito da liberdade de informação, este Tribunal considera que é dever do jornalista verificar de maneira razoável, embora não necessariamente exaustiva, os fatos em que fundamenta suas opiniões. Em outras palavras, é válido reivindicar lealdade e diligência no confronto das fontes e na busca de informações. Isso implica o direito das pessoas de não receberem uma versão manipulada dos eventos. Consequentemente, os jornalistas têm o dever de se distanciar criticamente de suas fontes e contrastá-las com outros dados relevantes[7].

De sua parte, em documento recente, de outubro de 2019, a Relatoria Especial de Liberdade de Expressão explicitou a visão da CIDH no tratamento da veracidade de informações sobre assuntos de interesse público.

As informações sobre assuntos de interesse público gozam de certa presunção de legitimidade, visto que se trata de um discurso especialmente protegido. Quando é difícil determinar a veracidade ou falsidade da informação, essa presunção é mantida. Só pode cair quando for “contestada por autoridade competente que ofereça garantias suficientes de independência, autonomia e imparcialidade”, tipicamente, um órgão judicial que age após receber uma denúncia específica. [8]

Este debate se torna especialmente relevante quando são analisadas as alterações significativas ocorridas no ambiente informacional nos últimos dez anos.

Verdade x desinformação

Os parâmetros interamericanos de liberdade de expressão foram constituídos em um cenário marcado pela prevalência do jornalismo profissional como organizador da esfera pública. Até os anos 2000, pluralismo e diversidade eram questões prementes, mas a confiabilidade nas notícias veiculadas era, de certa forma, a regra. Notícias claramente falsas eram exceções.

A popularização da internet na década de 2000 ampliou as fontes, mas a mediação principal na primeira década do século seguia sendo a do jornalismo profissional. Redes sociais e plataformas foram criadas naquela década, mas ainda não tinham papel central na organização do ambiente informacional.

É na década de 2010 que se dá a virada para o modelo prevalente hoje. A popularização dos smart phones e a sofisticação de mecanismos de tratamento de dados pessoais e inteligência artificial fez com que as redes sociais assumissem a liderança não apenas no tempo de atenção do usuário, mas também como fonte de acesso a notícias, como mostram as últimas edições do Digital News Report[9].

A questão é que neste caso perdeu-se, em grande medida, a mediação do jornalismo profissional, e passou-se a lidar com grande volume de informações que ganham tração a partir da afinidade do usuário com o conteúdo. Por conta de características psicológicas nossas, como seres humanos, prevalecem como critérios de tração a mobilização de afetos positivos ou negativos. Nesse contexto, as redes sociais favorecem a exploração do ambiente informacional por interesses políticos e financeiros hábeis em explorar essas dimensões da psicologia humana.

O grande desafio passa a ser estabelecer parâmetros para lidar com a desinformação no volume e velocidade de sua ocorrência nas redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Pesquisa da UFMG e da USP mostra que sete das dez imagens mais compartilhadas em grupos de WhatsApp nos primeiros três meses da pandemia eram falsas, e 60% ligavam o covid-19 a uma conspiração chinesa[10]. Exemplos como esse mostram que o problema se torna de outra ordem quando se está lidando com operações organizadas com efeito concreto sobre o conjunto de informações disponíveis na esfera pública. Se parte tão significativa das informações disponíveis são falsas ou enganosas, então passa a haver um problema sistêmico. De carta forma, é o que a própria RELE/CIDH reconhece no mesmo texto recente.

Apesar da falta de elementos conclusivos sobre seus efeitos, parece claro que a disseminação deliberada de informações falsas empobrece o debate público e torna mais difícil para os cidadãos exercerem seu direito de receber informações de várias fontes e, em última instância, é um obstáculo para participar de decisões democráticas. Este documento reconhece a legítima preocupação dos Estados, da sociedade civil e dos atores privados envolvidos, bem como a importância da adoção de medidas proporcionais de combate à desinformação, em consonância com as obrigações internacionais em matéria de proteção dos direitos humanos, liberdades fundamentais e funcionamento do sistema democrático.[11]

Nesse sentido, é possível afirmar que estratégias de desinformação não apenas afetam a democracia e direitos sociais (como o direito à saúde), mas são, elas mesmas, violações à liberdade de expressão em sua dimensão coletiva.

O que fazer, então?

Essa constatação exige uma releitura da Convenção Americana de Direitos Humanos à luz do contexto atual. A Convenção indica que o exercício à liberdade de expressão:

(…) não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

  1. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
  2. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.[12]

O grande desafio é como deixar de lidar com o problema só no tratamento individual de cada caso e cada violação interpretada por uma autoridade judicial e encontrar maneiras legítimas de mitigar o fato de que grande parte da informação disponibilizada ao público neste novo contexto é falsa ou enganosa.

Embora a RELE/CIDH reconheça que a disseminação deliberada de informações falsas causa danos graves à democracia, ela ainda não oferece caminhos que sejam capazes de enfrentar o problema na dimensão que ele tem. Ao defender medidas proporcionais de combate à desinformação, a Relatoria opina que:

  • não se deveria aplicar o estândar de real malícia
  • não se deveriam estabelecer novos tipos penais para combater a desinformação
  • quando a desinformação afeta um interesse difuso como a ordem pública democrática, envolvida na integridade do processo eleitoral, “responsabilidades civis atribuídas não seriam adequadas para proteger esse interesse e a lei eleitoral poderia desenvolver respostas específicas a este tipo de fenômeno”[13].
  • impor responsabilidade a intermediários para controlar desinformação geraria efeito silenciador

Embora todos esses pontos estejam baseados em preocupações legítimas, resulta que, tomados em conjunto, eles passam a ter resultante zero na luta contra a desinformação. As recomendações apresentadas pela Relatoria como alternativas[14] buscam gerar impactos estruturantes, mas tem pouco efeito para lidar com a avalanche de notícias falsas. Fica subentendido que a solução com efeito imediato é deixar as plataformas livres para agirem contra desinformação a partir de seus próprios critérios.

O problema desse caminho é que se legitima, na prática, um arbítrio privado sobre a veracidade das informações, sem escrutínio público. Pedir transparência nos critérios e um ‘devido processo’ na moderação de conteúdos não garante que os critérios aplicados sejam adequados nem para a proteção da liberdade de expressão individual nem para a proteção de sua dimensão coletiva.

Enquanto a discussão se dividir entre se as plataformas devem ter liberdade de moderação de conteúdo desinformativo ou se devem ser proibidas de moderá-lo, o interesse público estará desabrigado. O debate não deve ser se as plataformas devem agir mais ou agir menos, mas sim sob quais parâmetros públicos elas devem atuar.

A solução equilibrada para este problema seria que os Estados nacionais estabelecessem parâmetros legais de moderação da desinformação, especialmente quando ela atinge direitos coletivos, como a proteção da democracia e da saúde pública. Esses parâmetros guiariam a ação das plataformas, que teriam um papel de aplicação num modelo de corregulação.

A adoção desse modelo evitaria quatro problemas:

  • inação – se soluções apressadas não são desejadas, não é razoável que os Estados continuem a ser espectadores inertes de um processo de corrosão da democracia e de condições básicas de realização de direitos sociais.
  • ação arbitrária dos Poderes Executivos – a adoção de modelos em que os poderes executivos são incumbidos de avaliação ampla de conteúdo, como em Cingapura[15], dá espaço para censura estatal.
  • Todo poder à justiça – a confiança num sistema de justiça que não tem como lidar com o tema na velocidade e volume atuais
  • Todo poder às plataformas – a liberdade para as plataformas estabelecerem parâmetros e critérios que passam por cima de legislações nacionais e parâmetros internacionais.

É claro que esses parâmetros precisariam ser cuidadosamente construídos, e alinhados aos parâmetros internacionais e às jurisprudências nacionais. Além disso, deve-se sempre observar que restrições à liberdade de expressão devem obedecer ao teste de legalidade, necessidade e proporcionalidade. Portanto eles teriam de ser devidamente previstos em lei e serem proporcionais. Mas é preciso construir saídas que enfrentem o problema crônico que o atual modelo de informação gerou para a dimensão social da liberdade de expressão. Proteger sua dimensão individual e deixar a dimensão social descoberta tem afetado de forma muito negativa a democracia e o exercício de direitos sociais.

[1] Corte IDH. Opinião Consultiva 5/1985. Parágrafo 32.

[2] Ver, por exemplo, o parágrafo 12 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm

[3] Ver caso Vélez Restrepo e familiares vs. Colômbia (2012), par. 137, ou caso Fontevecchia e D’Amico Vs. Argentina (2011), par. 42, ou caso Memoli vs. Argentina (2013), par 119.

[4] Corte IDH. Opinião Consultiva 5/1985. Parágrafo 33.

[5] Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. OEA, 2000. Parágrafo 7

[6] Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. OEA, 2000. Parágrafo 10

[7] Corte IDH. Caso Mémoli vs. Argentina (2013). Parágrafo 122.

[8] Relatoria Especial de Liberdade de Expressão. Guía para garantizar la libertad de expresión frente a la desinformación deliberada en contextos electorales, Relatoría Especial para la Libertad de Expresión, OEA/Ser.D/XV.22, Outubro de 2019, p. 26

[9] Reuters Institute Oxford. Digital News Report (2021). https://www.digitalnewsreport.org/

[10] https://apublica.org/2020/07/sete-das-dez-imagens-mais-compartilhadas-em-grupos-de-whatsapp-durante-a-pandemia-sao-falsas/

[11] Relatoria Especial de Liberdade de Expressão. Guía para garantizar la libertad de expresión frente a la desinformación deliberada en contextos electorales, Relatoría Especial para la Libertad de Expresión, OEA/Ser.D/XV.22, Outubro de 2019, p. 18. https://www.oas.org/es/cidh/expresion/publicaciones/Guia_Desinformacion_VF.pdf

[12] Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), artigo 13.2.

[13] Relatoria Especial de Liberdade de Expressão. Guía para garantizar la libertad de expresión frente a la desinformación deliberada en contextos electorales, Relatoría Especial para la Libertad de Expresión, OEA/Ser.D/XV.22, Outubro de 2019, p. 24.

[14] Relatoria Especial de Liberdade de Expressão. Guía para garantizar la libertad de expresión frente a la desinformación deliberada en contextos electorales, Relatoría Especial para la Libertad de Expresión, OEA/Ser.D/XV.22, Outubro de 2019, p. 26

[15] BRANT, João; SANTOS, João G.B., DOURADO, Tatiana e PITA, Marina. Regulação de combate à desinformação: estudo de oito casos e recomendações para uma abordagem democrática. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2021.

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